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‘Cadelas de aluguel’: sofrimento, raiva e vingança

Dahlia de la Cerda


07 de março de 2025

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O ‘Nexo’ publica um trecho de ‘Cadelas de aluguel’, da mexicana Dahlia de la Cerda. O livro traz relatos de personagens em situações vulneráveis que, após passarem por casos de violência, tiveram de resolver seus problemas com as próprias mãos

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Ai, meu Deus do céu! Como a gente ia saber, jovem! Mas, meu filho, parecia um rapaz! Usava um boné, um daqueles brincos nos lábios e tinha uma lágrima tatuada no olho esquerdo. É verdade que estava usando uma calça marrom bem passada, com uma prega no meio. Pensei em sua mãezinha, em sua santa mãe. Um mortinho não é apenas um defunto, é o filho, o irmão, o pai de alguém. Você já reparou que quando seus pais morrem te chamam de “órfã”, e quando seu marido morre você vira “viúva”? Perder um filho não tem nome. Pobre da mãe dele, não consigo parar de chorar por ela! O natural, a lei de Deus, é que você seja enterrada pelos filhos, e não o contrário. 

Você tinha que ter visto: chorava agarrada ao corpo, gritando para ele se levantar. Então veio com tudo para cima da gente e gritou: “Sim, roubava, mas não era má pessoa!”. Você acredita, menino? Como a gente ia saber se era uma pessoa boa ou má? Só vimos ele ali, com o facão, e entre chorarem na casa dele e chorarem na nossa, melhor na dele, né? Naquela noite fazia muito frio. Minhas irmãs e eu pusemos nossa mãe para dormir. Ela não anda mais, sofre de pé diabético e é cega. Imagine só, tem noventa anos! Já está muito ruinzinha. Depois demos comida a Zapatitos, nosso gato, e preparamos um bule de café com bastante canela e uns biscoitinhos de chocolate e creme. 

Estávamos terminando um trabalho. Aqui na colônia todo dia 12 de dezembro organizamos as primeiras comunhões comunitárias e era a nossa vez de confeccionar os vestidos para as meninas. Quinze vestidos de cetim branco com renda e véu. Bordamos com fio dourado uma pomba branca feita de lantejoulas e miçangas; fica bem bonito, embora seja muito cansativo. Trabalhamos como costureiras e é assim que ganhamos nosso dinheiro. Estávamos fazendo os bordados e ouvimos um barulho no quintal. Toby começou a latir. Minha irmã Emilia foi ver. “Tem um desgraçado no quintal”, gritou para nós. 

Vivemos em uma colônia conturbada e roubos e assassinatos são comuns aqui. Chegamos quando ainda não havia ninguém. Vivemos toda nossa infância e juventude lá no Centro Histórico. Naquela época havia dezenas de cortiços. Um dia apareceu um homem muito bem-vestido, se apresentou como representante do governo, declarou que iam comprar aqueles imóveis e que tínhamos que ir embora. Meu pai conseguiu um terreninho aqui. Naquela época era uma terra comum. Só havia montanha e uma ou duas casas levantadas com o que conseguiram: papelão, chapas de metal, tijolos velhos. Aos poucos meu pai foi construindo e conseguimos ter uma casa digna. Aí chegou outro funcionário do governo e nos informou que nossos terrenos não eram nossos porque quem nos vendeu não era dono de nada; queriam nos despejar. Nós, colonos, nos organizamos e resistimos e aqui estamos. Ainda não nos reconhecem como colônia, nos chamam de “assentamento irregular”. E pela mesma razão não temos acesso a serviços, não há luz, água ou esgoto. Tudo o que você vê de iluminação e drenagem foi instalado por incorporadoras imobiliárias que assumiram o controle das terras vizinhas e construíram condomínios-gaiola e conjuntos habitacionais. 

A colônia, que é como a chamamos, foi sendo povoada. Começaram a construir casas cada vez menores e deixaram vir gente muito mal-educada. Famílias sem valores morais, delinquentes e mulheres de reputação duvidosa. O governo não manda patrulhas para nos atender porque não somos municipalizados, por isso há roubos e drogados pelas esquinas. As imobiliárias não assumem responsabilidade pela insegurança, dizem que já fizeram o suficiente pavimentando e iluminando as ruas. Vivemos nas mãos de Deus. 

Não era a primeira vez que invadiam nossa casa. Por volta de janeiro, um homem que alguns vizinhos queriam linchar por ser ladrão pulou em nosso quintal e fez minha irmã Martha de refém. Ficamos ressabiadas. Por isso, quando Estela gritou que tinha um safado lá fora, fomos correndo para a cozinha, que fica ao lado do quintal. E sim, meu jovem, vimos ele ali. E te digo mais: ele tinha toda pinta de delinquente. Camiseta folgada, aquelas calças curtas. Então dissemos: “Vai embora, meu filho. Não queremos problemas, somos apenas mulheres; põe a mão no coração, meu filho, você não tem mãe?”. Ele não deu bola. E se deixamos ele se aproximar? E ainda com aquele facão enorme? 

Estamos cansadas de viver rodeadas de violência, pobreza e roubos, por isso fico triste ao passar pelo Centro e ver shoppings luxuosos e terrenos onde foi a nossa casa. Fico triste que tenham nos despejado das nossas casas por sermos morenos e de poucos recursos, porque foi isso que aconteceu. O governo chamou de “limpeza do Centro Histórico”; a verdade é que queriam nos expulsar por sermos feios e pobres. E todos, mesmo que pobres e de feição humilde, têm direito à moradia. Aqui na colônia, você viu, nossa casa é simples, mas digna. Temos um quintal amplo com muitas plantas e espaço para os nossos animaizinhos. Você viu que criamos galinhas e perus e que também temos uma cozinha espaçosa e quatro cômodos? Porque com trabalho e esforço conquistamos nossas coisinhas em família. As construtoras e o governo são os culpados pela violência; constroem casas desumanas: moradias de dois cômodos e um banheiro e de apenas quarenta metros quadrados. 

Sabe quantas pessoas moram nesses lugares? Até dez. Os meninos não têm escolha a não ser ir para a rua e acabar numa esquina. Por isso tivemos compaixão e suplicamos: “Meu filho, tenha juízo, em nome de São Judas. Vem, a gente te convida para jantar. Não vai estragar seu futuro por uma estupidez”. Não nos deu ouvidos. 

Aqui nos veem como presas fáceis dos criminosos porque não temos um homem cuidando de nós. Meu pai morreu de câncer há vinte anos e em seguida minha mãe adoeceu com diabetes, e nós renunciamos à vida de casadas para nos dedicar a cuidar do que existe de mais sagrado, que são nossos pais. Nossa juventude se foi com eles, cuidando deles, e nunca nos casamos; somos as solteironas da colônia. Talvez por isso ele tenha decidido invadir a nossa casa, e te juro por Deus que não queríamos fazer mal a ninguém, mas veio com o facão, e embora tenhamos gritado “Filho, não, meu filho, pega o que quiser”, era como se ele estivesse em outro planeta. Minha irmã acertou a cabeça dele com uma frigideira. Eu fiquei em pânico, peguei outra frigideira e dei o segundo golpe. Demos cerca de dez golpes na cabeça, nos ombros e nas costas dele. Caiu no chão. Minha outra irmã estava fora de si, só nos olhava chorando. Quando vimos que ele estava ali, no chão, sem se mexer, chamamos a polícia. 

Fomos para a sala e continuamos tomando café e comendo pão para passar o susto. Tínhamos medo de que ele se levantasse. A polícia e uma ambulância chegaram. Contamos o que aconteceu. Para nossa surpresa nos informaram: “A garota não apresenta mais sinais vitais”. “A garota?”, minha irmã perguntou. “A garota que invadiu para roubar”, respondeu o policial. Jesus Cristo, meu filho, alguma coisa quebrou dentro de mim. Nunca pensei que fosse uma menina, juro que parecia um rapaz! Então nos aproximamos e, sem boné, sim, era mesmo uma jovenzinha. Estava com o cabelo preso em tranças. A cabeça dela, ah, meu Deus, em uma poça de sangue. Os lábios já estavam roxos. Coitadinha, vai saber o que deve ter passado para terminar daquele jeito. A mãe dela apareceu e, bom, queria vir para cima da gente. O irmão dela nos ameaçou. 

Os vizinhos se amontoaram do lado de fora da casa. Entre gritos, os oficiais retiraram o corpo da jovem e nós fomos levadas para a delegacia. Nos deixaram ir embora no dia seguinte: provamos que agimos em legítima defesa. Fomos absolvidas. O que me preocupa é Deus. Uma coisa é sermos perdoadas pela justiça humana e, outra, não sofrer o castigo divino. Já fizemos uma novena para a menininha e organizamos todos os rosários da Virgem de Guadalupe em sua humilde morada. Também demos de presente às meninas os vestidos para a primeira comunhão e pedimos a São Judas que interceda por nós diante de nosso Deus Pai. Você acha que ele vai nos perdoar?

Cadelas de aluguel

Dahlia de la Cerda
Trad. Marina Waquil
DBA
176 páginas

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