Choveu muito desde então, e grande parte dessa chuva foi literal ou metaforicamente radioativa: ponto. Um cenário de aço, o século XX. O padrasto Abraham Karem projetou e construiu a segunda geração de drones, que você pode ou tu podes ler ou ver aqui, visitante, impulsionado pela violência antiga dos pais fundadores e pelas novas violências do Estado de Israel, leitor. O destino das tramas, dos tecidos e das raízes deste Museu, documental e catastrofista, é sempre tecer e tramar guerras. O padrasto Karem não foi o pai dos drones, pelas dúvidas e pelas dívidas, porque desde os tempos dos balões de ar quente e dos dirigíveis e aviões, fórmulas foram desenvolvidas para catapultá-los, controlá-los remotamente, transformá-los em mísseis, próteses, dispositivos, nossos olhos aéreos e externos. Mas, com Amber e Predator, os olhares começaram a ser simultâneos e, depois de Amber e Predator, nunca mais foram apenas olhares; também foram braços executores, bestas voadoras disparando flechas em chamas, multiplicadoras de incêndios. Consciência sem memória, aérea e externa, memória sem consciência, desumanos, a gente sabe.
Ninguém sabe quando um século começa, mas sabemos quando termina. O século XXI começou no amanhecer dos tempos tecnológicos, na preparação lenta e inexorável para o adeus, cujas raízes foram tecidas consciente ou inconscientemente por nossas antepassadas, nossas inúmeras avós, radicais, ninguém sabe quando ou como, nem mesmo os deuses antigos, por isso esta sala nasce das cinzas e das rodas de fiar. O século XXI terminou em 2100, pelas dúvidas, mas principalmente pelas dívidas.
Cem anos antes, um século para nos entendermos, a rede esperava um estímulo para expandir seu tecido, os drones esperavam um problema para resolver, o sistema esperava uma pergunta e ela foi formulada por terroristas, e a resposta arrasou tudo. Enfim, o fim. O 11 de Setembro foi o atentado mais icônico da história da humanidade até então, mas não o mais brutal: ponto. Houve muitos, tantos, quase todos, muito mais brutais, desde os primeiros e pré-históricos, igualmente massivos, mas órfãos de iconografia.
Os problemas e soluções coletivas preocupam o sistema nervoso deste Museu, visitante ou leitor ou vice-versa, mas as tramas amam tanto os indivíduos, e talvez Ben Grossman seja quem mais sofreu com a magnitude avassaladora da resposta dos Estados Unidos à queda de suas torres gêmeas, ao seu excesso de representação. Porque, ao contrário de seus contemporâneos Julian Assange, Gary McKinnon, Chelsea Manning ou Edward Snowden, Ben Grossman ainda tem as mãos sujas de sangue e na consciência demasiadas mortes, a gente sabe. Todos nasceram no século XX e com seus dedos reescreveram o século XXI, mães ou quase mães, às vezes também padrastos, são as pontes humanas entre o passado e a membrana, entre as antepassadas e nosso século XXI: ponto. E seguimos seguindo.
Toyota Survivor carbonizado (2025)
[objeto histórico]: Toyota Motor Corporation e Exército de Israel.
O dia em que arrancou os olhos amanheceu nublado. E, para contar isso, devemos dar um salto de 24 anos, mudar o estilo e até o gênero, a gente sabe, desculpe pelas formas, é claro, tão informais, visitante que lê, leitor que visita nosso Museu sem protagonistas verdadeiros. Como todas as manhãs, naquele 7 de maio de 2025, Ben Grossman acordou com cócegas Sarah, sua filha de três anos, vestiu-a e lhe deu o café da manhã, enquanto sua esposa Avi estava no chuveiro. Despediu-se delas com uma xícara de café na mão e entrou em seu Toyota Survivor, dirigindo quarenta minutos até um parque industrial onde ficava o subsolo da base militar secreta Ben Gurion IV, a poucos quilômetros da fronteira de Israel com o Egito. Desceu até o andar menos doze e se preparou para seu turno de seis horas como piloto de drones. Ele estava muito confortável com os novos dispositivos neurológicos e biométricos, de tecnologia israelense e testados pelo Exército dos Estados Unidos em Guantánamo: se os níveis de estresse ultrapassassem os limites estabelecidos, se houvesse qualquer sinal mínimo de ansiedade excessiva, o terminal seria bloqueado e ele poderia voltar para casa para descansar por 48 horas seguidas. Ele não queria acabar como Roy ou Rachel. Já fazia doze dias que ele não precisava apertar o gatilho, as duas últimas operações terminaram sem vítimas fatais, tinham acabado de atribuir uma nova missão a ele e Ben provavelmente passaria horas apenas monitorando o alvo em sua aldeia jordaniana e avaliando dados de inteligência. E foi assim. Uma topografia de faixas de texturas e cores vaporosas diante de seu olhar atento. Uma topografia aparentemente quieta, mas em cuja superfície de videogame era possível perceber o balanço arenoso do vento no deserto, a dilatação e contração das sombras à medida que o sol traçava sua parábola diária, o movimento das cabras ou pássaros com máscaras de átomos ou bactérias: a realidade instável, pixelada. Ben registrou e voltou para casa.
No meio do caminho, o cenário, como ele contou anos depois, de repente parecia uma tela dividida ao meio pela linha do horizonte, piscando, resistindo à mudança de canal ou oferecendo toda a resistência possível à sucção do céu. E então uma rajada mudou tudo. Porque quando já dobrava à esquerda para tomar o desvio que conduzia ao assentamento de colonos onde ficava sua casa, uma folha de jornal se prendeu no limpador de para-brisa. Ele a removeu depois de estacionar. Nunca explicou por que não se limitou a jogar a folha fora, por que a olhou com atenção, por que se fixou na foto da capa do jornal egípcio. Mas o fato é que fez isso e que reconheceu naquelas ruínas fumegantes, nos restos daquele edifício, com uma menina e um adolescente chorando em primeiro plano, a casa de um alvo. Não podia ser, não, era impossível. Ele entrou em sua casa atordoado. Não havia ninguém. Sentou-se no balcão da cozinha e alisou o papel com as mãos: não havia dúvida, era a residência no Sinai de Salim Ab-Darrá, as paredes e o jardim e o muro que ele vinha monitorando fazia vários dias e cujo ataque finalmente havia descartado. Ele procurou no Google, mas não encontrou nada. Entrou diretamente, sem passar pelo buscador, nas páginas da imprensa egípcia: as manchetes falavam da morte de Salim Ab-Darrá, mas o sistema o impedia de acessar as notícias. Ele decidiu tomar um banho para se acalmar e avaliar os fatos com mais clareza. A única explicação plausível era que a missão tivesse sido reatribuída a algum colega e que este sim tivesse encontrado provas irrefutáveis para a execução, com um baixo nível de danos colaterais. Aquela zona só era coberta por Hannah e ele. Ligou para ela, que já estava em casa: vou te ver esta noite, quando Sarah já estiver dormindo, disse ele, mas antes me diga apenas uma coisa: você executou alguma operação nos últimos quatro dias? Ben, você sabe que não posso te responder isso, ainda mais por telefone. Você tem razão, desculpe, mas é que agora meus pulmões estão tão pesados que não consigo respirar. Diga-me pelo menos se você recebeu alguma missão no Sinai entre ontem e terça- -feira passada. Estou trabalhando na Jordânia. Tudo bem, obrigado, obrigado, vamos tomar uma cerveja esta noite e te conto.
Mas essa cerveja nunca aconteceu. Ben Grossman saiu de casa em seu Toyota Survivor vinte minutos depois, embarcou uma hora mais tarde em um ferry que atravessava o Mar Vermelho, entrou como turista no Egito e dirigiu duas horas e meia até ver com seus próprios olhos o jardim coberto de cinzas: a julgar por como aquela casa, aquelas portas e aquele muro haviam sido destruídos, a explosão só poderia ter sido causada por um míssil israelense. Quando Avi chegou em casa com Sarah, encontrou na porta três carros de polícia com as luzes acesas, uma dúzia de agentes estava revistando o escritório e o quarto. No mesmo momento em que terminavam as três horas de interrogatório sobre seu marido, um míssil lançado de um drone destruía o Toyota Survivor de Ben Grossman, que naquele momento estava no banheiro de um posto de gasolina no lado egípcio da fronteira. Enquanto observava o carro em chamas, com o rosto convulsionado e ferido pelo choro, ele entendeu que haviam sido seus próprios colegas e que nunca mais poderia voltar para casa.
Perdão pelo estilo, mas a trama exige e ordena, a gente sabe, impressionante. Continuará, porque se trata de tecer e continuar tecendo, pelas dúvidas e pelas dívidas.
Membrana
Jorge Carrión
Trad. Michelle Strzoda
Relicário
200 páginas