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Há um mês escrevi aqui que a democracia americana estava à beira do colapso. Hoje está claro que o processo se intensificou. Ela ainda pode se recuperar, mas já é possível afirmar que, para tanto, será preciso derrotar um regime autoritário que já está instalado no país.
Imagino que, visto do Brasil, isso possa parecer hiperbólico. Talvez vocês tenham lido sobre estudantes sendo presos indefinidamente sem devido processo legal ou tendo que fugir do país. Ou sobre imigrantes documentados sendo deportados mesmo com ordem judicial em contrário. Mas são casos isolados, não? A ideia de um regime autoritário, para nós, conjura imagens de tortura e assassinatos e tropas nas ruas. Certamente não é o que temos aqui nos EUA neste momento.
Mas isso é uma visão restrita das múltiplas formas que o autoritarismo apresenta na realidade. No mais das vezes, as perseguições são direcionadas a um número relativamente pequeno de alvos, que servem de exemplo para que os demais considerem os custos potenciais de se opor ao governo. Nessas situações, um clima de medo se instaura, e é esse clima característico que já está definitivamente instalado em vários segmentos-chave da sociedade civil norte-americana.
A experiência vivida atualmente em segmentos importantes da sociedade norte-americana reflete sintomas inconfundíveis da vida sob um regime autoritário
Permitam-me mencionar alguns exemplos relativamente comezinhos que vivi na última semana aqui em Washington. Num deles, conversava com um amigo, servidor público federal, enquanto assistíamos ao treino de natação das nossas filhas. Falávamos, naturalmente, sobre todo o caos no governo. Em certo ponto, ele abaixou o tom de voz, a ponto de eu ter dificuldade em escutá-lo por causa do barulho da piscina. Ele percebeu e escreveu no celular o que tentava me dizer, e então me mostrou a tela: “Essa pessoa sentada aqui na nossa frente pode estar tentando escutar nossa conversa, e eu não sei quem é”.
Outro exemplo: um conhecido que trabalha no Banco Mundial disse que lê com frequência o que eu escrevo no Bluesky, mas está evitando curtir posts porque teme que, quando começarem as demissões no banco, irão vasculhar as redes sociais dos funcionários na hora de decidir quem vai embora. Uma amiga, professora universitária, me disse o mesmo. Sua mãe está à espera de um “green card”, e ela foi aconselhada a evitar qualquer tipo de sinal que possa gerar problemas no processo.
Outro colega com quem falei é um sul-africano (branco) que foi embora do país natal para escapar da opressão do regime do apartheid. Ele resumiu assim a situação atual nas universidades, que vêm sendo alvo preferencial do governo: “Agora estamos pensando, ‘será que posso falar isso na frente dessa pessoa, ou melhor evitar?’. Era exatamente assim sob o apartheid”.
Esses episódios ilustram, espero, meu ponto fundamental: a experiência vivida atualmente em segmentos importantes da sociedade norte-americana reflete sintomas inconfundíveis da vida sob um regime autoritário.
A isso se soma o fato de que as instituições às quais caberia prover os “pesos e contrapesos” para resistir às investidas autoritárias do Poder Executivo estão inoperantes ou sob forte pressão.
Vejamos o Poder Legislativo. O Congresso está basicamente se abstendo de legislar, sem impor resistência alguma às várias medidas do governo Trump que explicitamente tomam para si poderes congressuais sob o orçamento, ou que passam por cima de legislação anteriormente aprovada. Mesmo o Partido Democrata, sob a liderança pusilânime do senador nova-iorquino Chuck Schumer, acaba de permitir a aprovação de uma resolução orçamentária que essencialmente concede a Trump (e Elon Musk) a autoridade de decidir obedecê-la ou não. O remédio do impeachment, então, é letra mais que morta.
O Judiciário vem impondo barreiras, mas os ataques do Executivo vêm se avolumando. Os exemplos de desafio explícito já se acumulam, e os juízes que emitiram medidas cautelares contra iniciativas do governo sofrem enorme pressão de Trump e aliados. Isso para não falar da perseguição explícita a escritórios de advocacia que trabalharam em causas de inimigos designados pelo presidente, que coloca em questão o direito de opositores à representação legal.
A mídia é um capítulo à parte. Mesmo deixando de lado o fato de que uma fatia considerável das plataformas de informação são essencialmente controladas por aliados do governo (tal como o X/Twitter de Musk ou a Fox News), veículos e plataformas nominalmente independentes vão se acomodando, tal como o Washington Post de Jeff Bezos ou as redes da Meta de Mark Zuckerberg.
Já viraram rotina casos em que empresas de comunicação fecham acordos judiciais espúrios com Trump, em ações que elas teriam elevada probabilidade de ganhar em condições normais. Isso ilustra o efeito que o choque trumpista vem tendo sobre a comunidade empresarial como um todo: o medo de perseguição (e a busca por favores) gerando silêncio e acomodação.
Em síntese, o autoritarismo já se instalou. E não estou fazendo uma acusação espúria, como muitas vezes a extrema direita faz (inclusive no Brasil). “Cancelamento” nas redes sociais ou alhures é completamente diferente de perseguição pelo Estado, e processos judiciais contra quem atentou contra a democracia não têm nada a ver com arbitrariedade sem processo. Não há sofisma capaz de obscurecer essas diferenças.
Mas o fato de o autoritarismo ter se instalado não quer dizer que ele vá triunfar. Como disse aqui há um mês: “Estamos vivendo uma corrida entre a consolidação oligárquica e autoritária desejada pelo MAGA de Trump e Musk, e os mecanismos tradicionais da democracia americana.” Espero que estes sejam ainda fortes o suficiente para prevalecerem no final.
Gratuita, com os fatos mais importantes do dia para você
Filipe Campanteé Bloomberg Distinguished Associate Professor na Johns Hopkins University. Sua pesquisa enfoca temas de economia política, desenvolvimento e questões urbanas e já foi publicada em periódicos acadêmicos como “American Economic Review” e “Quarterly Journal of Economics”. Nascido no Rio, ele é PhD por Harvard, mestre pela PUC-Rio, e bacharel pela UFRJ, todos em economia. Foi professor em Harvard (2007-18) e professor visitante na PUC-Rio (2011-12). Escreve mensalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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