
Partidos federados: existência independente, mas atuação conjunta
As eleições nacionais de 2022 trazem uma novidade para os partidos: a possibilidade de fechar alianças no formato de federações. O modelo estabelece uma série de regras a fim de que a união de forças não seja apenas circunstancial. E traz benefícios a legendas menores, pressionadas pela crescente cláusula de desempenho.
Num cenário de fragmentação partidária, com 32 legendas oficializadas no Brasil, muitas delas apenas cartoriais, a adoção do modelo de federação é um avanço em relação às regras anteriores de coligação. Mas o mecanismo ainda precisa ser testado na prática.
Neste texto, o Nexo explica os conceitos em torno das federações partidárias e mostra quais são suas motivações e suas prováveis consequências.
O QUE é uma federação partidária
A federação é uma aliança partidária formal que precisa seguir uma série de regras. Ela prevê que dois ou mais partidos podem se unir para disputar uma eleição. Mas precisam atuar como se fossem um só durante os quatro anos seguintes. A exigência vale para a disputa eleitoral e vale também para a atuação legislativa.
O modelo é diferente de uma fusão . Além de ter tempo de duração, os partidos federados podem manter sua identidade, seu número eleitoral, sua estrutura partidária e, principalmente, podem administrar o fundo partidário e o fundo eleitoral que recebem dos cofres públicos de forma autônoma. Mas há uma série de amarras. Veja abaixo:
As regras da federação
ESTABILIDADE NA UNIÃO
A federação deve durar pelo menos o período de uma legislatura (4 anos), o que abarca uma eleição geral e uma eleição municipal. Se desfeita antes do prazo, há punições para os partidos envolvidos, incluindo perda de acesso ao fundo partidário até o fim do prazo mínimo de uniãoe a proibição de fazer coligações nas duas eleições seguintes.
AFINIDADE PROGRAMÁTICA
A federação tem de unir partidos com afinidade programática, pois eles passam a compartilhar o mesmo estatuto e o mesmo programa eleitoral. No Congresso Nacional e nos Legislativos estaduais e municipais, os partidos têm de atuar juntos. Compartilham a mesma liderança parlamentar, as mesmas orientações em votações e indicam em conjunto parlamentares para ocupar postos em comissões temáticas e na direção das Casas legislativas.
ATUAÇÃO NO PAÍS TODO
A federação tem caráter nacional. Os partidos federados são considerados como um único partido para fins de disputa de cargos majoritários (presidente, governador, senador e prefeito) e proporcionais (deputado federal, estadual e distrital, além de vereador), em todo o país. Também atuam como um só partido na arrecadação de fundos de campanha e na propaganda eleitoral.
COMO a federação afeta os partidos
A federação dá impulso a partidos pequenos. Sozinhos, eles correm o risco de não atingir o chamado quociente eleitoral , que estabelece um número mínimo de votos, a depender do total de votos válidos computados na eleição, para que um partido possa ocupar cadeiras nos legislativos. Veja o vídeo abaixo para saber como uma vaga proporcional é ocupada:
Além disso, a federação ajuda os partidos pequenos a superar a cláusula de desempenho , que estabelece votação mínima (e progressiva) em eleições para deputado federal. Um partido que não atinge a cláusula de desempenho deixa de receber dinheiro público e tempo de propaganda de rádio e TV.
Ao se federar, partidos pequenos aumentam consideravelmente as chances de atingirem o quociente eleitoral e a cláusula de desempenho, garantindo sua existência por pelo menos mais quatro anos. A união transitória também pode servir como preâmbulo de um processo de fusão .
Para os partidos maiores, as federações geram palanques mais amplos para suas campanhas, o que dá mais tempo de rádio e televisão para suas candidaturas e aumenta o poder do partido de garantir aliados já para o primeiro turno das eleições.
Imagine, por exemplo, um partido grande, com uma das maiores bancadas no Congresso e forte presença em todo o país, e um partido pequeno, liderado por pessoas expressivas na política nacional, mas com pouquíssimos deputados federais eleitos e competitivo apenas em poucos estados.
Sozinho, o partido pequeno, com poucos recursos e baixa visibilidade nacional, não conseguiria atingir o quociente eleitoral ou a cláusula de desempenho. Sem cadeiras no Legislativo e sem acesso a recursos como o fundo partidário, o partido pequeno acabaria extinto.
Já numa associação com o partido grande, o partido pequeno pega carona no desempenho eleitoral do parceiro e assim consegue atingir as metas e garantir sua existência por pelo menos mais quatro anos. Em contrapartida, pelos quatro anos seguintes, os parlamentares eleitos com esses votos compartilhados deverão atuar junto com os parlamentares do partido grande, como uma bancada única, de forma que o projeto político defendido pelo eleitor quando ele foi às urnas seja seguido.
O partido grande, por sua vez, conseguiria cadeiras no Congresso e acesso aos recursos partidários mesmo sozinho. Mas poderia ter de encarar a oposição do partido pequeno no estado em que este é forte, e acabar perdendo as eleições para o governo estadual.
O requisito da abrangência nacional, porém, pode beneficiar o partido grande. Federado ao pequeno, o grande consegue garantir que, desde o início da campanha eleitoral, as duas agremiações estarão juntas na disputa para governador, compartilhando, inclusive, o tempo a que cada um teria direito do horário eleitoral gratuito.
QUEM fez federação em 2022
Em 2022, os partidos brasileiros criaram três federações, que já tiveram o registro autorizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. O calendário eleitoral de 2022 previu a data de 31 de maio como limite do prazo das legendas para a obtenção dos registros, conforme determinou o Supremo Tribunal Federal.
A maior federação, e primeira a ser registrada no país, une PT, que atualmente tem a segunda maior bancada da Câmara e já chegou à Presidência quatro vezes, a dois partidos menores: o histórico PCdoB e o PV. Sob o nome Brasil da Esperança , a federação de esquerda disputará, entre outros cargos, o comando do Executivo federal, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT.
O programa da federação inclui a revogação do teto de gastos inserido na Constituição em 2016 e da reforma trabalhista aprovada em 2017, ainda que petistas reconheçam ser mais provável a revogação apenas de alguns pontos da reforma, junto com a aprovação de novas regras. Os objetivos conjuntos também incluem um programa nacional de transferência de renda “robusto”, mudanças legais para “enfrentar grandes monopólios das plataformas digitais”, e reformas na administração pública que garantam “combate à corrupção sem desvios políticos e ideológicos” e participação social.

Lula em evento dos 100 anos do PCdoB, no Rio de Janeiro
Outra federação à esquerda do espectro político registrada une PSOL e Rede , dois partidos que já tiveram candidaturas competitivas para cargos importantes como a Prefeitura de São Paulo e a Presidência da República, mas que, juntos, ainda somam apenas uma dezena de deputados na Câmara. Nas eleições gerais de 2018, diferentemente do PSOL, a Rede não atingiu a cláusula de desempenho.
A federação PSOL-Rede tem entre seus objetivos programáticos “educação pública e universal em todos os níveis”, “incentivo à agricultura familiar”, “enfrentamento à violência policial” e “freio ao saque e à espoliação mineral das multinacionais”. A diversidade dentro da aliança, com o PSOL mais à esquerda e a Rede mais próxima do centro, tem levado os dois partidos a buscar garantir o máximo de autonomia possível dentro da federação. Pelo estatuto entregue ao TSE, filiados de cada sigla poderão apoiar candidato diferente daquele escolhido pela federação nas eleições de 2022.

Guilherme Boulos (PSOL), Manuela D’Ávila (PSOL), Randolfe Rodrigues (Rede) e Juliano Medeiros (PSOL), durante almoço em Brasília
À direita das outras federações, PSDB e Cidadania também se associaram. Os tucanos, que já governaram o país por oito anos mas em anos recentes perderam protagonismo no Congresso e racharam entre si , se uniram ao Cidadania, um partido menor.
A Federação PSDB-Cidadania propõe a adoção do liberalismo econômico, “uma verdadeira revolução na educação básica” e a transformação do país na “maior potência verde do mundo”, entre outros pontos. Os dois partidos afirmam que o “claro e primordial objetivo” da união é oferecer ao eleitorado “uma alternativa inovadora, que se coloca como contraponto ao risco representado pela polarização Lula-Bolsonaro”.

O presidente do Cidadania, Roberto Freire (à esq.), e do PSDB, Bruno Araújo, na sede do Tribunal Superior Eleitoral
Dos 32 partidos registrados no TSE, portanto, sete optaram por integrar alguma federação. A partir de agora eles terão de manter as associações até 2026.
QUANDO o modelo foi criado
Desde a década de 1990, o Congresso discute propostas para limitar a profusão excessiva de partidos políticos no Brasil, um fenômeno que dificulta a governabilidade e as escolhas dos eleitores.
Essa discussão, porém, sempre esteve acompanhada do dilema sobre como preservar a pluralidade partidária, de forma a garantir uma representação parlamentar fiel à diversidade da sociedade brasileira.
A Comissão de Reforma Política do Senado apresentou em 2015 um projeto de lei propondo a criação das federações. O texto foi aprovado no mesmo ano pelos senadores, mas ficou travado na Câmara por anos.
Em outubro de 2017, o cenário começou a mudar. Naquele mês, o Congresso fez uma emenda à Constituição para proibir coligações nas eleições proporcionais . As coligações são uniões pontuais entre partidos apenas para disputar eleições. Depois disso elas são desfeitas.
Agremiações coligadas atuam como uma só perante a Justiça Eleitoral, mas não precisam ter qualquer afinidade programática, nem atuar juntas durante a legislatura. As alianças tampouco precisam ter caráter nacional, podendo dois partidos ser coligados num estado e adversários em outro.
Nas eleições proporcionais (para deputados federais, deputados estaduais e vereadores), nas quais os votos excedentes recebidos por um candidato são repassados a aliados, os candidatos dos partidos coligados transferiam entre si os votos que recebiam.
Como essa transferência acontecia frequentemente entre políticos de inclinações ideológicas totalmente discrepantes, o Congresso entendeu que as coligações nesse tipo de votação representavam uma fraude à vontade do eleitor, e acabou com essa possibilidade.

O plenário do Senado, no dia em que a PEC que proibiu as coligações em eleições proporcionais foi promulgada
A proibição foi celebrada por muitos analistas políticos, mas passou a pressionar os partidos menores a partir das eleições de 2020, quando passou a valer.
Em 2021, às vésperas de novo ano de eleições gerais, os partidos menores se viram ainda mais pressionados, em razão do aumento progressivo do percentual de votos exigido pela cláusula de desempenho, também estabelecida pela emenda constitucional de 2017.
A partir de 2023, serão necessários, entre outros critérios, pelo menos 2% dos votos para a Câmara nas eleições de 2022, distribuídos em pelo menos um terço dos estados (incluindo o DF) para se garantir acesso ao fundo partidário e à propaganda eleitoral gratuita.
Os partidos maiores, por sua vez, que vinham perdendo força desde as eleições gerais de 2018, também passaram a ver com melhores olhos a ideia da federação ou mesmo o retorno das coligações proporcionais.
Em setembro de 2021, o mecanismo das federações foi aprovado pelos deputados , dias após a Comissão de Constituição e Justiça do Senado barrar a volta das coligações proporcionais , como tentou inicialmente a Câmara. O projeto de lei das federações chegou a ser vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas o Congresso se articulou e, por maioria absoluta, derrubou o veto.

Senadores comemoram a derrubada do veto presidencial às federações partidárias
ONDE há mecanismos semelhantes
Em diversas democracias do mundo, há exemplos de partidos que formaram coalizões, seja para definir uma candidatura única nas eleições, seja para garantir governabilidade.
Nos debates sobre as federações partidárias, coalizões que governaram países como Alemanha, Espanha, Portugal, Chile e Uruguai, algumas delas duradouras por diversos mandatos, apareceram com frequência como modelos .
Mas em nenhum desses casos a manutenção da coalizão foi uma imposição da legislação nacional que gerou obrigações para os partidos em outros níveis de governo, como acontece com as federações. Na grande maioria dos casos, inclusive, os partidos sequer estabelecem estruturas compartilhadas, como o estatuto e o programa conjuntos exigidos dos partidos federados no Brasil.
No Uruguai, ao contrário, a coalizão entre dezenas de movimentos sociais e outras entidades no Frente Amplio, que já chegou à Presidência três vezes , forma um partido propriamente dito. “Os integrantes do Frente Amplio, como o Partido Socialista e o Partido Comunista, se orgulham de suas origens, mas não têm atuação autônoma”, afirmou ao Nexo o cientista político Paulo Velasco, professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Por essas razões, o cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, afirma que o modelo brasileiro das federações é único — e, na visão dele, positivo. “O modelo leva em conta a realidade institucional brasileira, criando soluções adequadas a ela e provando que jaboticabas podem ser bem doces”, disse Couto ao Nexo .
POR QUE a federação é questionada
Desde que estava em debate no Congresso, o mecanismo da federação divide opiniões, inclusive entre acadêmicos. Os argumentos desse debate, expostos no veto do presidente Jair Bolsonaro às federações e na derrubada do veto pelo Congresso, acabaram sintetizados no julgamento do tema pelo Supremo Tribunal Federal.
O PTB acionou o tribunal para questionar a constitucionalidade da lei que criou as federações em 2021. A sigla discordava da obrigatoriedade de os partidos associados no nível nacional manterem as alianças nos palanques estaduais e municipais, mas na Câmara acabou votando em peso a favor das federações .

O edifício-sede do Supremo Tribunal Federal
Ao Supremo, o PTB alegou que a federação é um arremedo das coligações proporcionais, que já haviam sido proibidas pelo Congresso por distorcerem a vontade do eleitor. Nesse sentido, o partido defendeu que o novo tipo de união apenas atrasa o fim da fragmentação partidária brasileira.
Em contrapartida, a advocacia da Câmarae os partidos PCdoB, PV, Cidadania, PT e PSB defenderam as federações. Alegaram que o mecanismo possibilita a existência de legendas que, embora pequenas, contribuem para a pluralidade da democracia ao representar interesses legítimos de parcelas da população.
Outro argumento favorável às federações foi o de que elas seriam uma forma de catalisar a concentração partidária de modo gradual e planejado, em novas estruturas com maiores chances de dar certo. Enquanto isso, a necessidade de afinidade programática entre os partidos federados garantiria a preservação da vontade do eleitor mesmo com a transferência de votos entre siglas diferentes.
Relator da ação, o ministro Luís Roberto Barroso entendeuque as federações não significam um retorno disfarçado das coligações proporcionais, sendo uma opção válida do Congresso, sobre a qual o Judiciário não pode interferir. A decisão, de dezembro de 2021, foi confirmada em fevereiro de 2022 pelo plenário do Supremo, por 10 votos a 1. Os ministros apenas ampliaram o prazo estabelecido inicialmente por Barroso para o registro das federações.
EM ASPAS: declarações sobre federações
“Assegura-se [com a possibilidade de federação] às legendas um período em que poderão experimentar a atuação ‘como se fosse[m] uma única agremiação partidária’ (…), sem a definitividade de uma fusão, o que evita a abrupta alteração na vida do partido e de seus filiados e preserva espaço de atuação para minorias políticas”
“A despeito da boa intenção do legislador, em que pese as regras específicas que buscariam conferir mais estabilidade para a federação partidária, a referida proposição contraria o interesse público, visto que inauguraria um novo formato com características análogas à das coligações partidárias”
“A proposta [das federações partidárias] dialoga com a crítica pulsante na sociedade de que há um número excessivo de partidos, com a vantagem de que, consoante ao dispositivo constitucional do pluralismo político, não ceifa legendas históricas, programáticas e que têm dado contribuições importantes ao Legislativo”
“Na minha maneira de entender, era bom que ninguém se unisse com ninguém, e os partidos que tivessem que acabar acabassem. Qualquer paliativo para driblar a vontade do eleitor é sempre ruim. Quanto mais os partidos dependerem de voto , melhor”
“Do ponto de vista da democracia representativa, é fundamental não se coibirem partidos ideológicos e programáticos. Se eles atuarem dentro das federações, e essas federações de fato funcionarem como um único partido, a preservação desses partidos não é um problema”
Vá ainda mais fundo
- Votos dos ministros do Supremo sobre as federações partidárias
- “ Federação de partidos políticos no Brasil: impactos sobre o sistema partidário, contexto latinoamericano e desafios para as eleições 2022”, artigo acadêmico de Roberta Maia Gresta (PUC-MG) e Volgane Oliveira Carvalho (UFPI), publicado na Revista Debates em abril de 2022
- “Formación de coaliciones electorales en perspectiva comparada ”, artigo de Facundo Cruz (Universidade de Buenos Aires)
- “ Partidos e sociedade ”, entrevista com o cientista político Cláudio Couto, da FGV-SP, no Festival Nexo + Nexo Políticas Públicas