O novo marco legal do saneamento básico sob análise
Marcelo Roubicek
25 de junho de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h27)Projeto de lei aprovado no Congresso prevê universalização do serviço e abre caminho para aumento da participação da iniciativa privada. O ‘Nexo’ conversou com dois economistas sobre o que está em jogo
Viela com esgoto a céu aberto em bairro da periferia de Brasília
O Senado aprovou na quarta-feira (24) o novo marco legal do saneamento básico. O texto já havia sido aprovado na Câmara dos Deputados no final de 2019 e segue para sanção presidencial.
O projeto de lei altera as regras para a prestação de serviços de saneamento, facilitando a entrada de empresas privadas no mercado e buscando universalizar o acesso no Brasil.
O texto tem origem em tentativas anteriores do governo Michel Temer de mudar o marco regulatório do setor. A principal medida do projeto de lei é a obrigatoriedade de haver concorrência nas contratações de serviços na área, o que abre caminho para o aumento da participação da iniciativa privada no setor.
O saneamento básico abarca uma gama ampla de serviços. Entram nesse escopo quatro tipos de atividades:
O acesso a esses serviços é deficiente no Brasil. A rede de esgoto, em especial, ainda está longe do alcance de quase metade dos brasileiros.
53,2%
da população brasileira teve acesso a coleta e tratamento de esgoto em 2018, segundo o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento
83,6%
da população brasileira teve acesso a água tratada em 2018
46,3%
do esgoto gerado em 2018 foi tratado
92,1%
da população brasileira teve acesso à coleta de lixo em 2018
O principal ponto do novo marco é abrir caminho para ampliação da participação privada no mercado. A forma de alcançar esse objetivo é tornando obrigatória a abertura de licitação quando os estados e municípios contratarem um serviço de saneamento.
Antes da lei, as autoridades locais podiam optar por firmar os chamados contratos de programa. Essa modalidade permite que empresas estatais que prestam serviços de saneamento sejam contratadas sem licitação – portanto, sem concorrência privada.
Com a obrigatoriedade das licitações e consequente vedação dos contratos de programa, a tendência é que haja aumento da participação de empresas privadas no mercado. Em meados de 2020, só 3% dos municípios brasileiros são atendidos por empresas privadas. Mas não obrigatoriamente haverá privatização dos serviços – afinal, as empresas públicas podem vencer as licitações e continuar prestando os serviços.
O texto prevê um período de transição para a obrigatoriedade de licitação nos serviços de saneamento. Até março de 2022, as autoridades locais poderão renovar os contratos de programa por até trinta anos – desde que incorporem metas de universalização dos serviços de água e esgoto, que estão previstas no novo marco.
A lei também permite a contratação dos serviços em bloco, reunindo grupos de cidades para contratar os serviços em conjunto. Ou seja, municípios vizinhos poderão integrar a mesma licitação.
A separação dos blocos será feita pelos estados, e os municípios terão um prazo para aderir a essas modalidades. Se os estados não conseguirem montar um bloco a tempo, a União é quem decidirá qual será a divisão.
A aglutinação e regionalização dos serviços de saneamento partem da ideia de que isso tornará os blocos mais atrativos aos investimentos do setor privado. Segundo esse raciocínio, com a junção de municípios de diferentes atratibilidades sob um mesmo processo de licitação, é possível que locais que teriam dificuldades de obter bons contratos consigam um serviço melhor do que se abrissem um processo próprio de licitação.
O novo marco legal busca estabelecer metas de universalização para os serviços de saneamento no Brasil. A ideia é que, até o final de 2033, 99% da população brasileira tenha acesso a água potável e 90% da população tenha acesso a coleta e tratamento de esgoto. Para isso, o Ministério da Economia estima que seja necessário atrair entre R$ 500 bilhões e R$ 700 bilhões em investimentos até 2033.
Os novos contratos de serviços de saneamento deverão incorporar esses objetivos. A regulação e fiscalização do setor caberão à ANA (Agência Nacional de Águas). Antes da nova lei, a agência era responsável por regular o acesso e o uso dos recursos hídricos no âmbito da União, como rios que atravessam mais de um estado.
A ANA deve ser a ferramenta usada pelo governo federal para centralizar e uniformizar a regulação do setor de saneamento. A ela caberá formular as chamadas “normas de referência” que vão orientar a atuação das empresas prestadoras de serviços e das agências reguladoras locais.
A agência irá estabelecer padrões de qualidade e eficiência que serão adotados no saneamento básico. Ela também fica responsável pela regulação das tarifas a serem cobradas dos consumidores dos serviços. Por fim, a agência também deve padronizar as diferentes metas do setor, considerando as condições de cobertura e viabilidade da prestação de serviços em cada local.
Muitas cidades pelo mundo passaram por processos de desestatização do setor do saneamento, mas algumas delas chegaram a voltar atrás na decisão. Entre 2000 e 2017, foram registradas no mundo 267 cidades que reestatizaram os serviços de saneamento, segundo levantamento do Transnational Institute, centro holandês de estudos em democracia e sustentabilidade.
Na maioria dos casos, a volta da responsabilidade para o Estado esteve ligada a uma percepção de que as empresas que prestavam os serviços não eram capazes de cumprir com o total das obrigações envolvidas. Os serviços eram considerados ineficientes, com aumento de preços e investimentos insuficientes.
A maior parte dos casos de reestatização ocorreu na Europa. A lista envolve grandes cidades como Berlim (Alemanha), Paris (França) e Budapeste (Hungria). Só na França, 106 cidades reestatizaram o saneamento. Fora do continente europeu, Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia) são alguns dos casos sul-americanos, enquanto Bamako (Mali), e Maputo (Moçambique) foram cidades africanas que passaram pelo processo.
Para entender as diferentes avaliações sobre o novo marco do saneamento, o Nexo conversou com dois especialistas:
Gesner Oliveira Acho que, em linhas gerais, é um bom projeto. É algo que vinha sendo discutido há bastante tempo e ataca três questões fundamentais. Uma questão é a da regulação. Há hoje, com o sistema atual, uma pulverização muito grande: muitas agências reguladoras com regras nem sempre tecnicamente sólidas, e muitas vezes contraditórias entre si. Isso é fonte de muita insegurança, sobretudo quando se fala de investimentos de dez, vinte, trinta anos. O projeto incumbe a Agência Nacional de Águas de padronizar, uniformizar e estabelecer critérios gerais de regulação.
O segundo ponto é você colocar mais competição entre empresas, em geral – públicas ou privadas. As empresas públicas tinham os chamados contratos de programa, que eram feitos sem licitação. O que o projeto fez foi estabelecer uma transição para que, conforme os contratos de programa forem vencendo, se licite as concessões e áreas que estavam sendo operadas por empresas públicas – que, eventualmente, poderão vencer as licitações. Mas você tem competição.
E o terceiro ponto: havia pouco incentivo a aumento de produtividade, a estabelecimento de metas de desempenho. Havia pouco incentivo à eficiência. Todo o projeto de lei dá muita ênfase à necessidade de estabelecer metas e aumentar eficiência. Nesse sentido, acho bastante positiva a nova lei.
Marco Antonio Rocha Primeiro, acho que o objetivo do projeto é, na verdade, forçar uma privatização generalizada das empresas de saneamento. Você tem uma série de dispositivos na lei que induzem à privatização das empresas estaduais de prestação desses serviços.
Acho que tem muita coisa que está mal desenhada. Primeiro, a questão da agência regulatória. O projeto de lei, na verdade, atribui uma série de novas competências à Agência Nacional de Águas. É uma agência relativamente pequena, onde você não vai ter concursos públicos nos próximos anos. Além disso, sabemos, por experiências dos anos 1990, que esse modelo de atribuição de uma série de competências a uma agência nacional de regulação também torna essa agência alvo de captura pelo setor privado.
Depois, a forma como o projeto de lei define que vão ser prestados serviços por empresas privadas para municípios com muito pouca atratividade financeira. Isso é sempre um problema crítico de qualquer processo de privatização. Esse projeto de lei permite que se organize blocos. Dentro desse pacote, há áreas pouco atrativas e muito atrativas. Só que em termos de racionalidade da prestação desses serviços, da engenharia disso, da organização da prestação de serviços – inclusive em termos de eficiência –, não necessariamente os blocos são o melhor desenho. A lógica da formação dos blocos vai ser meramente financeira. Há uma série de buracos nesse projeto de lei sobre como tornar essas regiões pouco atrativas em atrativas. É muito vago.
Além disso, é muito pouco crível que vá haver concorrência nessa área. É uma questão técnica. É um volume de investimentos muito grande, é uma engenharia financeira que torna essa área uma área de atuação de poucas empresas. É muito difícil criar concorrência pela própria questão da infraestrutura técnica e física envolvida. Se você não cria concorrência, você acaba tendo o que a gente chama na economia de monopólio natural: há uma empresa privada com muito poder de mercado e uma agência reguladora que acaba ficando quase que capturada por essa empresa. E você não consegue que o Estado imponha sua capacidade regulatória.
Gesner Oliveira Tenho convicção que sim. Porque o volume de investimento necessário para universalizar até 2033 é da ordem de R$ 20 bilhões a R$ 25 bilhões ao ano. Até o ano passado [2019], o investimento ficou entre R$ 12 bilhões e R$ 13 bilhões. Então tem havido um hiato muito grande de investimento.
As empresas públicas não têm capacidade de investimento, com exceção da Sabesp, em São Paulo, da Copasa, em Minas Gerais, e da Sanepar, no Paraná. São empresas que têm maior capacidade de investimento, mas não é suficiente para eliminar o déficit de saneamento. Você precisaria mais que dobrar o nível de investimento.
Para que isso ocorra, realmente é necessário que haja mais investimento. Você poderia dizer que os estados, municípios e União poderiam entrar com recursos. Mas, diante da situação fiscal atual, isso é impossível. Há um rombo fiscal monumental na União, nos estados e na maioria dos municípios, que já era grave antes e se tornou gravíssimo depois da pandemia. Então, realmente, a única forma é trazer recursos privados – não para substituir os públicos, mas para somar aos públicos para fazer a universalização. E, de fato, há um apetite por parte do setor privado para fazer esse aporte de capital.
Marco Antonio Rocha Não. Para universalizar esses serviços, seria necessário investir 0,2% do PIB por ano. É uma cifra muito pequena, algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões. A proposta empurra uma atribuição que poderia ser resolvida facilmente pelo setor público, com menos custo para a população, com capacidade de levarmos esse serviço para áreas de habitação precária dentro das cidades.
Como a saúde está nos ensinando, para universalizar um serviço, essa coisa tem que ser pública. É a única garantia de que alguma coisa será universalizada. E o volume de investimentos para isso não é muito alto.
Não foi feito ainda porque toda resolução orçamentária é, de certa forma, um conflito distributivo. Dentro da forma como o próprio Estado elenca suas prioridades, o saneamento e a universalização desses serviços não é uma prioridade. Essa é a questão: o desenho fiscal que é feito e o regime fiscal que vivemos permitem que um direito universal básico simplesmente não seja atendido. Mas essa é uma questão política, e não de incapacidade financeira do Estado.
Fora que existe uma série de problemas na realização desses investimentos: desapropriações, obras públicas e modificação do espaço público, o que também torna a realização e operacionalidade desse tipo de investimento um tanto problemática quanto à relação entre setor público e setor privado. Então a garantia que você tem de que um serviço pode ser feito num ritmo mais rápido e com fornecimento universal do serviço é isso ser uma atribuição pública.
Gesner Oliveira Não acredito. Para os mais pobres, acredito que vai ficar mais barato. Porque hoje os mais pobres pagam uma tarifa infinita – eles não têm o serviço. E, na prática, infelizmente, o que acontece muito é que às vezes você tem regiões com uma tarifa de água artificialmente baixa: uma tarifa que não cobre o custo do serviço e que, por outro lado, a empresa também não fornece um serviço de boa qualidade.
O que acontece é que muita gente em áreas carentes e pobres pagam água para determinados grupos – não sempre, mas inclusive milicianos – e a água acaba sendo muito cara. Agora, quando você tem um sistema de parcerias, é muito importante que você tenha bons projetos e boa regulação. Ou seja, você estabelece a tarifa máxima e tem que estabelecer a tarifa máxima calculando quanto custa prestar o serviço, de fato. Esse valor talvez seja mais caro comparativamente às cidades que têm populismo tarifário, que cobram tarifa baixa e não entregam o serviço.
Além disso – e isso você pode prever nas licitações e na regulação – famílias com renda muito baixa podem pagar uma tarifa social mais baixa. Isso é uma situação que me parece muito mais justa do ponto de vista social do que todo mundo pagar a mesma tarifa sendo que o serviço é de má qualidade, muita gente fica de fora e não há capacidade de investimento.
Marco Antonio Rocha Acho que eles ficarão [mais caros], sim. Pelo nosso aprendizado sobre resultados gerados por esse modelo de marco regulatório que está sendo imposto a esses serviços, eles ficarão mais caros. Posso falar com segurança.
O que acontece é que, por você ter criado uma empresa privada com altíssimo poder de mercado, você passa a não controlar a tarifa. Como você não consegue controlar a tarifa, você acaba tendo preços abusivos para a população.
Gesner Oliveira Na minha opinião, é um mito. Na verdade, no caso, por exemplo, de Paris, houve uma avaliação que a cidade tinha condições de fazer manutenção do serviço – isso ocorreu depois de um século. É absolutamente concebível que uma cidade tenha um grande déficit de investimento e traga o setor privado. Ele faz o investimento, monta a estrutura e, depois de passadas algumas décadas com aquela estrutura operando, a cidade pode chegar à conclusão que é melhor ela mesma operar. O difícil é montar a rede, fazer as obras estruturais e assim por diante.
Em muitos casos – o de Buenos Aires é o mais patente – o que houve foi um descumprimento aberto do contrato. Você tinha determinadas obrigações de parte a parte, e o Estado interveio na tarifa, não cumpriu as obrigações. Naturalmente, o contrato fica inviável. Mas não se deve a uma superioridade técnica da reestatização.
Você pode ter um serviço público de excelente qualidade. É o caso de Uberlândia e Maringá, onde a autarquia municipal funciona muito bem e presta um bom serviço. Você pode ter empresas privadas ruins – em Campo Grande, no passado, houve exemplos de empresas privadas que operaram mal a cidade.
O que importa mesmo é a qualidade do projeto, uma boa gestão por parte da empresa – seja pública ou privada – e a boa regulação e independência da regulação. Agora, quando você tem politização, congelamento de tarifas para fins eleitorais, intervenção nos serviços ou investimentos para agradar políticos e setores, aí, realmente, o serviço degringola. Por isso é muito importante a regulação externa, técnica e independente. A esperança é que, com essa nova lei, você consiga ter uma regulação mais uniforme e mais previsível.
Marco Antonio Rocha Sim, há risco. Há estudos que demonstram que os fatores que levam a um processo de reestatização são ligados ao impacto da descontinuidade da prestação desses serviços, ao extremo encarecimento do fornecimento desses serviços, ou à incapacidade do Estado em regular uma determinada empresa privada em uma situação de monopólio natural.
Os três fatores que são apontados são exatamente os fatores críticos de um processo de privatização em saneamento. Quando o marco regulatório é mal desenhado – como está sendo o caso brasileiro – ele gera esses três fatores. Portanto, existe uma possibilidade muito alta, da forma como isso está sendo implementado no Brasil, de gerar uma necessidade de um processo de reestatização.
Esses estudos também apontam que o processo de reestatização é caríssimo, tanto do ponto de vista político como financeiro. Geralmente, envolvem batalhas jurídicas muito longas. Os estudos concluem que é melhor não fazer [a privatização] se houver o perigo de ter que reestatizar. A pior coisa possível é um processo de privatização mal feito que leve a um processo de reestatização posterior.
NEWSLETTER GRATUITA
Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia
Gráficos
O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você
Destaques
Navegue por temas