Expresso

A corrida por fora de empresários pela vacina contra a covid-19

Estêvão Bertoni

26 de janeiro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 22h55)

Bolsonaro estimula compra de imunizantes pela iniciativa privada em meio à escassez de vacinas no SUS para grupos prioritários

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FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 19.JAN.2021

Imagem mostra apenas as mãos de uma profissional de saúde segurando seringa espetada num frasco de vacina da Coronavac; fundo está desfocado

Profissional de saúde prepara vacina contra a covid-19 para ser aplicada, no Amazonas

O governo federal tem estimulado o setor privado a negociar a compra de vacinas contra a covid-19 com o objetivo de tentar reativar a economia do país. A iniciativa levanta questionamentos éticos devido à escassez de imunizantes no sistema público para os grupos prioritários e é vista como uma tentativa de outros grupos que estão no final da fila da vacinação de passar na frente dos demais. A ideia deve também esbarrar na recusa dos próprios laboratórios em vender para empresas.

Numa tentativa de viabilizar a ideia, o governo enviou na sexta-feira (22) uma carta ao laboratório anglo-sueco AstraZeneca dando aval para que empresários brasileiros negociem a compra de 33 milhões de doses da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford — 11 milhões desse total teriam que ser adquiridos de uma só vez, segundo o acordo. Em contrapartida, metade das doses teria que ser doada ao SUS (Sistema Único de Saúde). O restante poderia ser usado pelas empresas para a imunização de seus funcionários.

O presidente Jair Bolsonaro disse na segunda-feira (25) que o governo deu o sinal verde para a compra privada de vacinas ainda em 2020. Ao todo, 12 grandes empresas teriam se unido para discutir o tema. Segundo o jornal O Globo, as conversas começaram por iniciativa de executivos da Gerdau e da JBS, mas por discordâncias entre os participantes sobre a distribuição das doses, muitas empresas já teriam desistido da proposta.

“Não existe nada de furar fila. Uma parte das vacinas seria doada ao governo federal. E a outra parte seria usada pela empresa que comprou. O critério de uso da parte que ficaria com as empresas compete às empresas. A outra metade ficaria com o SUS”

Jair Bolsonaro

presidente da República, ao falar do aval para a compra privada de vacinas, na segunda-feira (25)

A guinada no discurso

A defesa da compra privada de imunizantes pelo governo acontece em meio a uma mudança no discurso do presidente, desta vez em prol da vacina. Bolsonaro vinha desde o final de 2020 questionando a segurança e a eficácia dos imunizantes e já disse que não tomaria a vacina — o que é visto como uma forma de desincentivar a população a se vacinar. Ao mesmo tempo, ele defende um falso tratamento precoce com remédios que não funcionam contra a covid-19.

O presidente repetiu a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, que afirmou na segunda-feira (25) que a “volta segura ao trabalho” era importante para a retomada da economia. “A vacinação em massa é um fator crítico de sucesso para o bom desempenho da economia logo à frente”, disse em entrevista à imprensa.

Na terça-feira (26), ao participar de um evento organizado por um banco, Bolsonaro disse que a vacinação daria “mais conforto à população” e “segurança a todos” para que a economia “não deixe de funcionar”.

“Eu quero deixar bem claro que o governo federal é favorável a esse grupo de empresários para levar adiante a sua proposta, trazer vacina para cá, a custo zero para o governo federal, para imunizar então 33 milhões de pessoas. O que puder essa proposta ir à frente, nós estaremos estimulando. Porque, com 33 milhões de doses de graça, ajudaria em muito a economia e aqueles também que por ventura queiram se vacinar”, disse.

Como a vacina exige a aplicação de duas doses, a quantidade citada por Bolsonaro seria suficiente para 16,5 milhões de pessoas. Caso a divisão proposta por empresário fosse feita, cerca de 8 milhões receberiam a vacina pelo sistema público de saúde.

A resistência à ideia

Com uma população de quase 211 milhões de pessoas, o Brasil tinha a sua disposição na terça-feira (26) apenas 12 milhões de doses de duas vacinas contra a covid-19: a Coronavac, da chinesa Sinovac, comprada pelo Instituto Butantan, e a Covishield, da AstraZeneca/Oxford, que será produzida no Brasil pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Elas estão sendo aplicadas em profissionais de saúde da linha de frente, idosos com mais de 75 anos ou institucionalizados, indígenas e quilombolas de vários estados. Em fevereiro, o país espera ter mais 10 milhões de doses em vacinas de Oxford/AstraZeneca importadas da Índia, e o Butantan prometeu entregar 40 milhões de doses da Coronavac ao governo federal até abril.

O número é insuficiente inclusive para vacinar todos os grupos prioritários definidos pelo governo federal. São quase 78 milhões de pessoas que precisariam tomar a vacina antes dos demais pelo risco que correm em relação à infecção pelo novo coronavírus.

Por isso, a possibilidade de que empresas comprem vacinas e imunizem seus funcionários é vista por alguns especialistas como imoral, pois pessoas saudáveis estariam passando na frente das que mais necessitam.

Discussão semelhante ocorreu no começo de janeiro, quando a ABCVAC (Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas) anunciou que negociava a compra de 5 milhões de doses com o laboratório indiano Bharat Biotech. Ao Nexo o professor de bioética Alcino Eduardo Bonella, da Universidade Federal de Uberlândia, disse ser condenável do ponto de vista ético que clínicas privadas pudessem vender os imunizantes “sem que exista no setor público a vacina disponibilizada para todo mundo”.

Essa opinião seria compartilhada inclusive por empresas que foram convidadas a discutir a compra. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Itaú, Vale e Petrobras abandonaram a conversa por discordarem da divisão das doses — segundo elas, 100% das vacinas teriam que ser destinadas ao SUS.

De acordo com o jornal Valor Econômico, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, que tem acompanhado as conversas sobre o tema em grupos de empresários e investidores, se posicionou contrário à compra privada devido ao temor de que ela pudesse inflacionar o mercado (já que as empresas pagariam muito mais pelas doses) e consequentemente dificultar as tentativas do governo de comprar os imunizantes.

As doses estariam sendo negociadas pelos empresários brasileiros a US$ 23,79 a unidade , segundo o jornal O Estado de S. Paulo. O valor é quase cinco vezes superior aos US$ 5,25 pagos pelo governo federal pelo lote importado da Índia na sexta-feira (22).

Em publicação nas redes sociais, o médico e advogado Daniel Dourado disse que, ao incentivar a compra privada de vacinas, o governo “ se omite numa política pública que tem obrigação de fazer”. “As empresas se apresentam para resolver a situação delas próprias e depois dar uma ajudinha ao setor público. E a justificativa é que precisou disso porque o governo se omitiu”, escreveu.

Ele lembra que o governo tem por obrigação legal requisitar os imunizantes e incorporá-los ao Programa Nacional de Imunizações caso sejam realmente comprados pelas empresas.

Ação complementar

Alguns especialistas, porém, consideram que a proposta poderia ser positiva, a depender de como seria realizada. Ao jornal O Globo a epidemiologista Carla Domingues, que comandou o Programa Nacional de Imunizações de 2011 a 2019, disse que seria melhor o país receber 15 milhões para a rede pública, como uma ação complementar de empresários, do que não receber nada, considerando a gravidade da pandemia no Brasil.

Atualmente o país passa por uma segunda onda da doença e várias regiões estão com o sistema de saúde sobrecarregado. Manaus e cidades do interior do Amazonas registraram mortes por falta de oxigênio devido ao rápido crescimento de casos na região.

Para o advogado e diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência, Paulo Almeida, em entrevista também ao jornal O Globo, a participação privada pode ser importante se não houver competição com o setor público. Seria razoável, segundo ele, propor que as empresas sigam a prioridade na vacinação definida pelo governo federal.

“Ele [setor privado] tem logística e celeridade, o que pode ajudar a superar este momento de crise. O dilema maior é evitar mais mortes”, disse ao jornal, na terça-feira (26).

A posição dos laboratórios

Depois da divulgação das negociações, a AstraZeneca informou por meio de nota na terça-feira (26) que não vai “ disponibilizar vacinas para o setor privado” neste momento da pandemia.

“Nos últimos sete meses, trabalhamos incansavelmente para cumprir o nosso compromisso de acesso amplo e equitativo no fornecimento da vacina para o maior número possível de países ao redor do mundo”, afirmou o laboratório.

Segundo a AstraZeneca, as doses só chegarão à população, neste momento, por meio de “acordos firmados com governos e organizações multilaterais”. A vacina da empresa integra o consórcio Covax Facility, coordenado pela OMS (Organização Mundial da Saúde), do qual o Brasil é integrante.

O acordo da AstraZeneca com a Fiocruz prevê a produção de 201,4 milhões de doses do imunizante no Brasil até o final de 2021.

Outros grandes laboratórios que estão desenvolvendo vacinas contra a covid-19, como a Pfizer , também estão priorizando apenas acordos com os governos para a distribuição de vacinas.

Com a recusa desses laboratórios, empresas brasileiras que queiram comprar vacinas teriam que procurar outras opções. Atualmente, 66 vacinas estão sendo testadas em humanos, das quais oito já foram aprovadas para uso emergencial e temporário.

Por enquanto, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) só aprovou o uso emergencial e temporário no país de duas vacinas (Coronavac e Covishield). Outras vacinas teriam que passar pelo crivo da agência, o que poderia levar tempo, já que a Anvisa tem exigido que os imunizantes sejam testados em voluntários brasileiros.

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