Prisão, tensão militar e demanda a Bolsonaro: os rumos da CPI
Fernanda Boldrin
09 de julho de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h13)Comissão avança em seu terceiro mês de depoimentos acumulando embates com Forças Armadas e presidente após suspeitas de corrupção virem à tona. Senadores tentam prorrogar trabalhos
O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz, ouve senadores em sala da comissão
A CPI da Covid viveu seu momento mais agudo na quarta-feira (7) ao mandar prender uma testemunha e ao ver seu presidente, Omar Aziz (PSD-AM), abrir uma crise com as Forças Armadas, com troca de declarações públicas em tom elevado. O dia seguinte, ao demandarem uma explicação de Jair Bolsonaro, os senadores receberam uma resposta do presidente em tom chulo.
Em seu terceiro mês de depoimentos, a Comissão Parlamentar de Inquérito, que já se debruçou sobre o negacionismo deliberado do governo, as responsabilidades na crise de oxigênio no Amazonas e o atraso na compra de vacinas, agora lida com suspeitas de corrupção no Ministério da Saúde.
Neste texto, o Nexo explica como a prisão de uma primeira testemunha impacta os depoimentos, mostra como a crise com as Forças Armadas pode influenciar as investigações, apresenta a estratégia dos senadores ao demandar uma resposta oficial de Bolsonaro sobre o caso Covaxin, lista o que já ocorreu de relevante na comissão e aponta para os possíveis rumos dos trabalhos que a princípio acabam no início de agosto, mas que parte dos senadores quer prorrogar.
Ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias passou cinco horas detido nas dependências da Polícia Legislativa na quarta-feira (7), no subsolo do Congresso, e foi liberado no mesmo dia após pagar fiança. Ele vai responder em liberdade por falso testemunho a uma CPI.
Dias é suspeito de ter pedido propina para negociar vacinas, o que ele nega. Sua prisão, determinada sob o argumento de que ele mentiu ao longo de seu depoimento, marcou a ação mais incisiva da CPI até então. Uma CPI que já tinha lidado com outras testemunhas que claramente faltaram com a verdade, mas não receberam voz de prisão.
Apesar de as CPIs terem a prerrogativa legal de mandar prender em flagrante testemunhas que dão falso testemunho, a medida surpreendeu advogados, espectadores e os próprios parlamentares que estavam na comissão.
Do ponto de vista jurídico, especialistas ouvidos pelo jornal Folha de S.Paulo apontaram possíveis abusos . Eles disseram que, na prática, Dias não estaria na comissão como testemunha, mas sim como investigado, o que lhe garantiria maior salvaguarda legal, como não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Quanto ao tom da comissão, a tensão cresceu de maneira inesperada. O depoente era interrogado pelo senador Fabiano Contarato (Rede-ES) quando Aziz interrompeu as perguntas para tomar a palavra. Os senadores protestaram pedindo tempo de fala e Aziz disse que não daria. E então explicou: “não vou dar, porque ele vai ser recolhido agora pela Polícia do Senado”, afirmou, anunciando a prisão.
A medida surpreendeu os colegas. Parlamentares como o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) defenderam que, em nome de um padrão de atitude, Dias não deveria ser preso. Outros senadores do grupo majoritário apoiaram a decisão de Aziz, que deu um tom político à medida: “ não aceito que a CPI vire chacota ”, disse o presidente da comissão.
Nos bastidores, senadores atribuem a iniciativa de Aziz não ao que a testemunha disse, mas ao que ela não disse. Segundo a jornalista Malu Gaspar, em sua coluna no jornal O Globo, existe a percepção de que há um dossiê de Dias em que ele reuniu material capaz de comprometer figuras do Ministério da Saúde e envolvê-las em escândalos de corrupção.
A determinação também chegou a ser apontada como uma espécie de “basta” para os depoimentos contraditórios. “Uma hora tinha que acontecer, porque as pessoas estavam completamente soltas para mentir, para não falar a verdade”, disse ao Nexo o senador Rogério Carvalho (PT-SE), suplente na comissão.
“Hoje já foi muito melhor, com a depoente de hoje, apesar de habeas corpus [que a permitia não responder a todas as perguntas], ela foi colaborativa, falou a verdade”, afirmou Carvalho, em referência ao depoimento da ex-coordenadora do PNI (Programa Nacional de Imunizações) Francieli Fantinato, realizado na quinta-feira (8).
O impacto da medida para os trabalhos do colegiado, porém, ainda é alvo de debate. Senadores de oposição e independentes ouvidos pela coluna Painel, do jornal Folha de S.Paulo, disseram que os depoentes podem adotar uma postura mais refratária , recorrendo com maior facilidade ao silêncio, por exemplo, o que poderia atrapalhar a investigação. Diversos depoentes já acionaram a Justiça para terem garantido o direito de permanecer em silêncio.
Já o governo Bolsonaro e os senadores aliados avaliaram que a prisão foi arbitrária. Eles apostam em um racha entre os integrantes da comissão devido à polêmica que ela causou.
Antes da prisão de Roberto Dias, ao saber que o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde tinha sido sargento da Força Aérea, Aziz lamentou que uma “banda podre” dos militares estivesse envolvida em “falcatrua dentro do governo”.
Há outros militares que integram ou integraram o Ministério da Saúde que estão sob suspeita nas transações para a compra de vacinas pelo governo do presidente Bolsonaro. Além disso, essas suspeitas se referem a fatos ocorridos durante a gestão de Eduardo Pazuello.
General da ativa, Pazuello foi ministro da Saúde de maio de 2020 a março de 2021, no período mais grave da pandemia no Brasil. Além de ser alvo da CPI, ele já responde a duas ações por improbidade administrativa por causa de sua gestão na área.
10
é o número de membros da ativa e da reserva das Forças Armadas citados em episódios investigados na CPI da covid até 8 de julho de 2021
Horas depois da declaração de Aziz, o Ministério da Defesa e os comandos das três Forças – Exército, Marinha e Aeronáutica – disseram em nota conjunta que “não aceitarão qualquer ataque leviano”. A nota diz ainda que isso não será tolerado. Aziz classificou a resposta das Forças como uma tentativa de intimidação .
Na quinta-feira (8), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), se referiu ao episódio como um “mal entendido”. Ele disse que conversou com o ministro da Defesa, general Braga Netto, e que o episódio “já foi suficientemente esclarecido e o assunto está encerrado ”.
Conforme notas de bastidor da jornalista Bela Megale, colunista do jornal O Globo, integrantes da cúpula das Forças Armadas prometem uma reação “mais dura” caso os senadores façam citações a suspeitas de corrupção envolvendo militares. Mas não detalharam que reação seria essa.
Na sessão de quinta-feira (8) da CPI, Omar Aziz reiterou que suas declarações se referiam a pessoas específicas, e não às Forças Armadas como um todo. Senadores do grupo majoritário afirmaram que a CPI não seria intimidada.
Ainda na quinta-feira (8), a cúpula da CPI enviou uma carta a Bolsonaro na qual cobrou explicações do presidente sobre a acusação do deputado Luís Miranda (DEM-DF) e de seu irmão, o servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda. A dupla disse que alertou o presidente sobre irregularidades na compra da vacina Covaxin, num negócio do governo brasileiro com o laboratório indiano Bharat Biotech intermediado pela empresa brasileira Precisa Medicamentos.
Segundo o relato dos irmãos, numa reunião que tiveram com Bolsonaro em Brasília, o presidente teria dito, ao ouvir os relatos de irregularidades, que isso deveria ser“rolo” de Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara e integrante do centrão, grupo que dá sustentação ao Palácio do Planalto no Congresso. A CPI quer saber do presidente se ele disse isso mesmo.
“É só uma resposta, presidente, só uma que o Brasil quer ouvir. Por favor, presidente, diga para a gente que o deputado Luis Miranda é um mentiroso, diga à nação brasileira que o deputado Luís Miranda está mentindo, que o seu líder na Câmara é um homem honesto”, afirmou Aziz na CPI. Barros afirma que jamais participou de qualquer negociação em relação à compra da Covaxin.
O pedido da CPI segue uma estratégia que passa pela possibilidade de os irmãos Miranda terem gravado a renião que tiveram com Bolsonaro, ocorrida em 20 de março de 2021. Mas essa suposta gravação ainda não apareceu. A situação que os senadores impuseram é a seguinte:
O presidente já é alvo de um inquérito criminal sob suspeita de prevaricação que está sendo conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria da ministra Rosa Weber.
Na mesma quinta-feira (8),Bolsonaro comentou a demanda de explicações feita pela CPIs durante sua live semanal nas redes sociais. O presidente afirmou que não vai responder à carta e usou uma palavra chula para dizer que não se importa com a comissão. “Sabe qual a minha resposta? Caguei. Caguei para a CPI, não vou responder nada”, disse Bolsonaro.
Após as denúncias de supostas irregularidades, o Ministério da Saúde suspendeu o contrato para adquirir o imunizante indiano, diante de suspeitas de superfaturamento . O caso Covaxin é considerado pela CPI o mais grave para o governo.
A CPI tem como foco atual as suspeitas de corrupção nas negociações para a compra de vacinas contra a covid. Trata-se de um novo momento da comissão que, segundo os senadores, já reuniu provas para incriminar integrantes do governo em diversas outras frentes da condução da crise sanitária. O Nexo elenca abaixo os principais achados da comissão até o momento, em suas diferentes linhas de investigação.
Negacionismo
A CPI reuniu provas de que Bolsonaro foi alertado sobre a gravidade da pandemia e a necessidade de medidas como isolamento social e uso de máscaras, mas que mesmo assim o presidente agiu em sentido contrário para evitar prejuízos a economia. Os depoimentos indicaram que o mandatário promoveu aglomerações e defendeu remédios ineficazes na contramão de orientações sanitárias a fim de encorajar a população a manter as atividades. Os senadores também dizem ter reunido evidências de que o mandatário escolheu se aconselhar com um grupo paralelo ao próprio Ministério da Saúde. Os indícios da comissão nessa linha apontam para uma atitude deliberada para que a população fosse contaminada rapidamente e o país atingisse a chamada imunidade de rebanho o quanto antes. Dessa forma, os impactos econômicos seriam menores.
Crise do Amazonas
Um dos fatos motivadores da criação da comissão foi a crise de oxigênio no Amazonas que, em meio ao um pico de casos de covid-19, levou pacientes a morrerem sufocados. O depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello reforçou a omissão do governo federal no caso. Outros depoimentos, como o da secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, expuseram a aposta do governo em medicamentos ineficazes, mesmo no cerne de uma das maiores tragédias brasileiras na pandemia. E a oitiva do ex-secretário de Saúde do Amazonas Marcellus Campêlo mostrou uma completa desarticulação das autoridades no caso.
Atraso das vacinas
Depoimentos e documentos recebidos pela comissão mostraram como o governo atacou e atrasou a aquisição de vacinas contra a covid-19. Um dos principais depoimentos nesse sentido foi o do representante da farmacêutica americana Pfizer Carlos Murillo, que citou diversas tentativas da empresa de vender vacinas ao governo – mas que foram ignoradas. Outros documentos recolhidos pela CPI apontam na mesma direção no caso da Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Os senadores avaliam já ter provas de que o governo deixou de comprar as vacinas insistindo na tese de imunidade de rebanho e passou a promover o contágio de forma deliberada. A oitiva de Osmar Terra , por exemplo, foi citada como evidência disso. Países como o Reino Unido também apostaram inicialmente nessa estratégia, mas logo a abandonaram ao perceber seu custo: o número altíssimo de mortes.
Suspeitas de corrupção
Em junho, depois de terem coletado evidências sobre ações e omissões do governo na gestão da pandemia, os senadores abriram novas frentes de apuração, mirando também suspeitas de favorecimento e corrupção na Saúde. Dois dos principais casos que ganharam destaque são da vacina Covaxin – suspeita de superfaturamento e favorecimento – e das negociações com a empresa Davati, tida como golpista pelos senadores, mas que levou a comissão a apurar uma teia de relações suspeitas entre agentes públicos e intermediárias. Foram acusações que chegaram nominalmente ao presidente Jair Bolsonaro, que teria tomado conhecimento de possíveis irregularidades. A CPI apura o que o mandatário fez desde então.
A CPI da Covid caminha para o fim de sua décima semana de depoimentos e, segundo senadores e especialistas, seu leque de efeitos até julho de 2021 vai além da possibilidade de responsabilização de agentes pela gestão da pandemia. O colegiado, dizem, já foi capaz de produzir efeitos políticos e na própria atitude do governo.
“O principal saldo político da CPI até o momento é ampliar o desgaste do governo Bolsonaro junto à opinião pública, sustentando o noticiário negativo associado à má gestão da resposta à pandemia de covid-19”, disse ao Nexo o cientista político e diretor da consultoria Pulso Público Vítor Oliveira. Na quinta-feira (8), pesquisa Datafolha registrou o índice mais alto de reprovação ao governo Bolsonaro: 51%.
Para o senador Rogério Carvalho, a comissão teve papel relevante perante a opinião pública. “A população não fazia o nexo disso [atitudes do governo] com a mortalidade. A CPI estabelece o nexo disso com a quantidade de mortes”, disse ele ao Nexo . “Acho que a CPI cumpriu um papel, e isso agora pode ser caracterizado como crime. As pessoas falavam de genocídio, de um monte de coisa, já tinha essa percepção. Mas a explicação e a arrumação de como isso foi produzido, e quem são os atores envolvidos, a CPI apresentou”.
Carvalho disse que as primeiras fases de apuração já estão consolidadas. “Os crimes contra a saúde pública e contra a humanidade, ou contra a vida, isso já é possível caracterizar, essa parte a gente já venceu. Agora, abriu um capítulo novo, que a gente nem imaginava, que é o elemento da intermediação e do ganho por conta disso”.
Vítor Oliveira pondera que a abertura de novas frentes também traz riscos. Ele diz que linhas investigativas envolvendo irregularidades nas vacinas podem ter efeito mais significativo, por exemplo, “em virtude da materialidade e gravidade das denúncias” e da “facilidade de comunicar isso ao público mais amplo”. Mas afirma que “é preciso encontrar um equilíbrio, evitando a tentação de perseguir todas as linhas investigativas possíveis, para que haja algum resultado político”.
Além disso, a comissão abre novas frentes ao mesmo tempo em que se aproxima de seu prazo final de funcionamento. Segundo o Senado, o prazo oficial final da CPI é 7 de agosto – sendo que, se não houver recesso dos trabalhos, o prazo final pode ser antecipado para o fim de julho. “O primeiro desafio [da CPI] é conseguir que ela seja formalmente prorrogada”, disse ao Nexo a cientista política da FGV-Brasília Graziella Testa.
Os senadores apresentaram um requerimento de prorrogação dos trabalhos, mas Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, ainda não deu seguimento à medida. Ele vem dizendo que irá analisar a medida no fim do prazo atual . Na segunda-feira (5), senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) acionaram o Supremo Tribunal Federal para a corte determinar que Pacheco prorrogue a CPI.
Apesar do impasse em torno do caso, os senadores da comissão já contam com a prorrogação do prazo para os trabalhos. Eles dizem que a decisão de prorrogar ou não não cabe a Pacheco, que apenas não fez isso de imediato.
Há ainda embates sobre a possibilidade de os trabalhos entrarem em recesso, que vai de 18 a 31 de julho. Pacheco disse na quarta-feira (7) que a CPI precisa parar se houver recesso parlamentar. Já Omar Aziz tem dito que a CPI não terá recesso . O recesso parlamentar, pela Constituição, ocorre de 18 a 31 de julho caso o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias tenha sido aprovado. Pacheco trabalha para acelerar esse processo.
Para parte dos senadores o recesso poderia atrapalhar o andamento dos trabalhos e esfriar a apuração num momento em que ela atinge novos alvos. A cientista política da FGV-Brasília Graziella Testa, porém, diz que não necessariamente a medida seria prejudicial para a comissão.
“A CPI tem duas instâncias. Tem a instância dos interrogatórios, essa parte mais midiática, que são as sessões. E a outra instância, que eu acho que é mais importante, que é a análise documental. E essa análise talvez não consiga funcionar no mesmo ritmo que as sessões. Mesmo que a CPI não funcione em julho, se essa segunda instância funcionar, pode ser até interessante para a CPI voltar, só em agosto, já pensando em fazer as convocações olhando para o que foi encontrado nos documentos”, afirmou.
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