Ensino infantil: como aplacar o atraso imposto pela pandemia
Aline Naomi e Ana Rita Monteiro
17 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 23h34)Segundo estudo da UFRJ, suspensão de aulas presenciais impactou de forma diferente crianças de 4 a 5 anos, agravando desigualdades de aprendizado. Especialistas sugerem medidas para lidar com o problema
Crianças no retorno às aulas presenciais durante a pandemia de covid-19, no Rio de Janeiro
Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.
Com a pandemia decretada em março de 2020 pela OMS (Organização Mundial da Saúde), escolas foram fechadas em todo o mundo a fim de reduzir o alastramento da covid-19. Segundo um relatório publicado em setembro de 2021, o Brasil foi o país que mais tempo ficou sem aulas presenciais nos ensinos infantil e fundamental, levando em conta membros e parceiros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
No ensino infantil, 8,9 milhões de crianças de 0 a 5 anos foram atingidos pela interrupção das atividades presenciais no país. Mas os impactos no desenvolvimento e bem-estar das crianças na pré-escola foram desiguais: filhos de famílias com maior nível socioeconômico tiveram perdas equivalentes a quatro meses, enquanto as de nível socioeconômico mais baixo tiveram danos de até seis meses. É o que diz um estudo de pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, publicado em outubro de 2021.
Neste texto, o Nexo explica os efeitos do fechamento das escolas que atendem à primeira infância, mostra as conclusões do estudo da UFRJ e elenca medidas recomendadas para que gestores educacionais tentem minimizar o atraso imposto pela pandemia.
A pesquisa da UFRJ, intitulada “O impacto da pandemia do covid-19 no desenvolvimento das crianças na pré-escola” , mostra que, em 2020, primeiro ano da pandemia, crianças do ensino infantil desenvolveram um aprendizado em ritmo mais lento.
Para chegar ao resultado, o estudo acompanhou a rotina de 671 crianças matriculadas em 21 escolas da rede conveniada e privada da cidade do Rio de Janeiro. O primeiro grupo, formado por 460 alunos, frequentou o segundo ano da pré-escola em 2019. O segundo, formado por 211 crianças, frequentou a mesma etapa da pré-escola, porém em um cenário pandêmico, em 2020.
A quantidade de alunos acompanhados no segundo grupo é menor porque houve diminuição do número de matrículas. De acordo com o Censo Escolar 2020,houve, no geral, um recuo de 1,6% das matrículas em comparação à 2019 .
As crianças do estudo participaram de testes individuais para a coleta dos resultados. Esses testes permitiram medir o desenvolvimento cognitivo e físico delas: o primeiro grupo em 2019 e o segundo em 2020. Além disso, foram realizados questionários contextuais respondidos pelos responsáveis e professores das escolas.
Os levantamentos pré-pandemia apontaram que 60% das 460 crianças que frequentaram o segundo ano da pré-escola em 2019 eram capazes de identificar números de dois dígitos numéricos. Já no segundo grupo, formado pelos 261 alunos da pré-escola em período pandêmico, o percentual caiu para 50%.
Em relação ao ensino de linguagem, 60% dos alunos do primeiro grupo, de 2019, foram capazes de identificar 18 letras do alfabeto. No segundo grupo, de 2020, apenas 45% das crianças alcançaram o mesmo resultado.
Dentre os mais afetados pela pandemia estão as crianças pequenas que vivem em condições de vulnerabilidade socioeconômica. Em especial, as crianças negras da zona rural e de comunidades tradicionais, como pontua Míghian Danae, professora do curso de pedagogia da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) na Bahia.
“Os grupos sociais que já estavam em desigualdade social no Brasil saem na pandemia novamente com essas desigualdades agudas, então, é preciso pensar em políticas públicas que alcancem as crianças negras, indígenas, quilombolas e crianças trans também”, disse Danae ao Nexo .
Os dados analisados na pesquisa da UFRJ reforçam a hipótese de aumento das desigualdades de oportunidades de aprendizagem, frente à situação de fechamento das escolas para atividades presenciais. Isso acontece pela dificuldade de acesso à internet para acompanhamento das aulas remotas e pela ausência de um adulto para orientar as crianças nas atividades por causa das longas jornadas de trabalho dos responsáveis.
Além disso, a escassez de políticas públicas que garantissem a conectividade de professores e responsáveis das crianças, principalmente com foco para educação infantil, dificultou a implementação das atividades remotas em grande parte das redes públicas.
“A desigualdade começa muito antes. Tem a ver com o acesso ao sistema de saúde, com o pré-natal da mãe grávida, com as políticas intersetoriais de apoio à família, à mãe, ao bebê”, disse ao Nexo Tiago Bartholo, pesquisador do LaPOpE (Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais) e um dos coordenadores do estudo.
Segundo Bartholo, quando uma criança chega à pré-escola, é possível medir as consequências dessa desigualdade, causada pelas diferenças socioeconômicas, em itens como linguagem, matemática e aptidão física.
Joedson Brito, doutor em Educação pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e professor Adjunto da UFNT (Universidade Federal do Norte do Tocantins) lembrou ao Nexo que o fechamento das escolas tem particularidades no que se refere ao ensino infantil.
“Com o fechamento das creches, ampliam-se os riscos de as crianças ficarem expostas à falta de alimentação, à violência, ao abandono e ao atraso nos processos de aprendizagem e desenvolvimento. Além disso, a falta da creche impacta as famílias trabalhadoras, principalmente, as mulheres”, disse.
O estudo da UFRJ, de Bartholo e Mariane Koslinski, fez uma análise até o fim do ano de 2020. Porém, houve escolas que permaneceram fechadas no início de 2021 . Os impactos podem ser ainda maiores dos que os detectados na pesquisa.
A educação infantil é a primeira etapa da educação básica e atende crianças de 0 a 5 anos de idade. Crianças de até 3 anos são atendidas por creches, enquanto a pré-escola atende o público de 4 e 5 anos.
Ainda que a matrícula na escola seja obrigatória só a partir dos 4 anos, toda a primeira infância é uma janela de oportunidades para o desenvolvimento físico, emocional e social, segundo Maira Souza, oficial de Desenvolvimento na Primeira Infância do Unicef (Fundo Das Nações Unidas para a Infância). “[A primeira infância] é quando desenvolvemos nossa capacidade intelectual, nossas aptidões e competências em geral com maior facilidade”, disse Souza ao Nexo .
Nessa etapa, a criança descobre como ela se relaciona com o mundo e desenvolve capacidades de autorregulação, isto é, entende os limites da interação dela com o outro. Isso é construído a partir de experiências, vivências, brincadeiras e interações, diferentemente do que acontece nas outras etapas de ensino, em que se trabalha de forma mais conteudista. “Nesse sentido, é mais difícil dizer como recuperar o conteúdo perdido, porque são vivências que não têm como voltar”, completou.
Estudante mede a sua temperatura na entrada de uma escola, em São Paulo
Mesmo sendo uma etapa importante de aprendizagem, a educação infantil é pouco valorizada, explicou Danae, da Unilab. “Ainda tem aquela ideia de que a escola de educação infantil é uma pré-escola, então não seria uma escola de verdade, e o que você aprende lá não é tão importante assim”, afirmou.
Para a professora, essa visão aparece quando chamam as escolas de educação infantil de “escolinha” ou chamam as professoras de “tia” como forma de desqualificar as profissionais. “Tem essa desvalorização da educação [infantil] como se as crianças fossem para lá [a escola] só para brincar, como se brincar também não fosse importante”, completou.
Apesar de as perdas serem preocupantes, o estudo da UFRJ indica que os danos podem ser reversíveis. Para isso, é preciso realizar diagnósticos individuais para identificar lacunas de aprendizagem, construir uma rotina mais estruturada e saudável para a primeira infância e desenvolver programas de reforço escolar nas escolas.
Os pesquisadores ainda sugerem a elaboração de um plano de recuperação do aprendizado. Segundo eles, o plano pode incluir programas de reforço escolar, tutoria entre pares, entre outras ações, sobretudo para alunos em situação de vulnerabilidade.
“É muito importante ne retomada das atividades presenciais considerar que os mais vulneráveis foram os mais fortemente impactados. Então, as políticas têm que ter foco [nos mais vulneráveis]. Se elas forem políticas que atingem a todos, as chances de recuperação são muito maiores”, explicou Bartholo.
O doutor em educação Joedson Brito também diz acreditar que os aprendizados podem ser recuperados. Segundo ele, o cérebro humano tem uma capacidade de plasticidade que possibilita o desenvolvimento ao longo da vida, mediante a interações sociais.
Além disso, Brito entende que “mesmo sem as condições ideais, e mesmo distante das escolas, processos de aprendizagem e sociabilidade acontecem e podem acontecer, sobretudo, a partir das vivências cotidianas de cada criança”.
Segundo a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, há algumas proposições para lidar com o impacto da pandemia no aprendizado e no bem-estar das crianças.
Coordenação
Para a manutenção da comunicação entre famílias e escolas para o desenvolvimento de atividades pedagógicas, deve-se fortalecer a importância de uma política nacional que garanta a conexão à internet para as escolas públicas e para as famílias dos alunos.
Orientação
Orientar as famílias em relação a brincadeiras e atividades que podem enriquecer o ambiente de aprendizado em casa, como uma estratégia de incentivar o desenvolvimento cognitivo e físico, bem como o bem-estar das crianças.
Focalização
Levar em consideração as limitações e dificuldades encontradas pelas famílias — como, por exemplo, longas jornadas de trabalho, situações de extrema pobreza, condições de moradia, saúde mental dos membros familiares, etc — para fomentar políticas intersetoriais mais amplas de apoio às crianças e a seus familiares.
Adaptação
Mapeamento de estratégias pedagógicas e de comunicação realizadas por educadores durante o período de fechamento das escolas na pandemia para serem adaptadas e/ou mantidas durante as atividades presenciais ou híbridas das escolas.
A Constituição define que os municípios são responsáveis pela educação infantil, mas atuam com o apoio técnico e financeiro da União. “A União tem um papel fundamental de indutor de políticas públicas, de regulador, junto com o Conselho Nacional de Educação e o Congresso Nacional”, disse ao Nexo Karina Rizek, consultora da Avante, instituição sem fins lucrativos que atua com formação de educadores.
Para Rizek, faltou coordenação nacional na área educacional. Nesse cenário, estados e municípios atuaram por conta própria desde a suspensão das aulas presenciais no início da pandemia.
Bartholo lembra que o MEC (Ministério da Educação) tem o papel de articular ações que buscam mitigar os impactos da pandemia na educação. “O ideal é ter algum tipo de coordenação nacional, o que ajudaria principalmente municípios menores que têm menos recursos”, disse. O pesquisador também questiona a atuação da pasta durante a pandemia. “Acho que há tentativas do MEC, mas em geral atrasadas.”
Um exemplo foi a ausência de uma política nacional de conectividade. Em março de 2021, o presidente Jair Bolsonaro vetou o projeto de lei que previa internet gratuita para estudantes e professores da rede pública. A justificativa para o veto foi a falta de dinheiro no Orçamento.
Em junho de 2021, o veto foi derrubado pelo Congresso. Apesar de a lei ter sido promulgada, o governo federal ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para tentar suspendê-la.
Procurado pelo Nexo , o MEC listou uma série de programas realizados pela Secretaria de Alfabetização durante a pandemia. Entre elas estão cursos sobre alfabetização para educadores e gestores escolares, plataformas para docentes planejarem aulas, publicações voltadas às famílias e uma tecnologia educacional gamificada. O ministério não citou ações ou políticas públicas a serem adotadas futuramente para minimizar os impactos da pandemia no ensino das crianças.
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