Expresso

Os embates entre Aras e os senadores da CPI da Pandemia 

Isabela Cruz

18 de fevereiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h21)

Procurador-geral da República afirma que não abriu inquéritos porque material entregue pela comissão está ‘desorganizado’. Parlamentares contestam e veem falta de vontade

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FOTO: JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO – 24.AGO.2021

Aras levanta apostila com etiqueta "MPF/PGR"

Augusto Aras, durante sua sabatina para recondução ao cargo de procurador-geral da República

Quase quatro meses após a conclusão dos trabalhos da CPI da Covid no Senado, nenhuma das 12 autoridades apontadas pela comissão como responsáveis criminais pela tragédia brasileira no enfrentamento à crise sanitária começou a ser investigada, ao menos formalmente. Por outro lado, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se movimentou para apurar se a comissão atuou dentro da lei.

A situação tem provocado tensão entre os senadores e o chefe do Ministério Público Federal, visto pelos parlamentares como omisso em suas funções – mas reconduzido ao cargo com o aval do Senado. Aras diz que faltam provas contra o governo Jair Bolsonaro e seus aliados no Congresso e culpa a CPI pela entrega de “informações desconexas e desorganizadas”. Os senadores dizem que o que falta é vontade de Aras.

10 terabytes

é o volume de arquivos do HD entregue a Aras pela CPI da Covid

Neste texto, o Nexo explica o poder de Aras para dar encaminhamento ao relatório da CPI, mostra como o procurador-geral tenta se defender das acusações de inércia e mostra o que ele fez desde que recebeu as conclusões da comissão.

A função de Aras

Toda comissão parlamentar de inquérito (CPI) é um órgão com função apenas de investigação, não tendo poder de julgar ou punir ninguém. É ao Ministério Público que cabe, a partir das provas reunidas e encaminhadas a ele pela comissão, analisar o que é consistente e o que não é, e denunciar (ou investigar mais) quem achar que deve.

No caso do presidente da República, de ministros e de congressistas, que têm foro privilegiado no Supremo Tribunal Federal, a instância do Ministério Público que faz essa análise é o órgão de cúpula da instituição, a Procuradoria-Geral da República.

Dentro do Ministério Público, o único procurador que pode arquivar ou protelar casos sem ter suas ações revisadas por um órgão colegiado é o procurador-geral da República. O posto é comandado desde 2019 por Augusto Aras, escolhido pelo presidente Bolsonaro para dois mandatos consecutivos, à contragosto dos integrantes do Ministério Público, que tinham feito outras sugestões.

Essa prerrogativa abre margem para que o procurador-geral seja acusado de blindar o presidente e aliados de investigações e de ações penais, sem que a legislação ofereça soluções claras para a suposta omissão. Pelo relatório da CPI, Bolsonaro é acusado de sete crimes comuns, entre eles infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo e prevaricação, além de crimes contra a humanidade e de crimes de responsabilidade (fundamentos de processo de impeachment).

A responsabilidade para os senadores

No final de junho de 2021, quando a CPI ainda estava em curso, senadores acionaram o Supremo para pedir que a Procuradoria-Geral abrisse um inquérito contra Bolsonaro com base em fatos levantados pela comissão. Tratava-se de suspeitas de corrupção nas negociações para a compra da vacina indiana Covaxin, que, segundo depoentes, tinham sido levadas ao conhecimento do presidente, sem que ele tenha tomado qualquer providência para evitar ou punir as supostas irregularidades.

Diante desse pedido, a Procuradoria-Geral, que tem a função constitucional de buscar a responsabilização criminal de autoridades no caso de malfeitos, tentou condicionar sua atuação à dos parlamentares. Disse ao Supremo que só iria decidir abrir ou não um inquérito após o fim dos trabalhos da CPI.

Relatora do caso no Supremo, a ministra Rosa Weber rejeitou o argumento da Procuradoria-Geral e determinou que a instituição tomasse uma posição “independente e autônoma” da atuação do Congresso. “No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”, escreveu a ministra, que nos meses seguintes ganhou a companhia de outros ministros na cobrança a Aras.

Aras então abriu um inquérito contra Bolsonaro, embora seja acusado de não levar a investigação à frente. No inquérito, a Polícia Federal defendeu que o presidente não cometeu crime, porque não teria a obrigação de atuar contra as suspeitas de corrupção “das quais não faça parte como coautor ou partícipe”. No âmbito político, a divulgação do caso Covaxin levou ao cancelamento, por parte do Ministério da Saúde, do contrato para a compra de 20 milhões de doses do imunizante.

Finalizada a CPI, Aras voltou a reivindicar uma iniciativa do Congresso. Em entrevista à rede CNN na terça (15), disse que os senadores da comissão se comprometeram a separar as provas em dez dias, num prazo que acaba nesta sexta-feira (18), e deu a entender que a validade de um inquérito a ser conduzido pela Procuradoria-Geral depende dessa iniciativa dos parlamentares – sem a qual, segundo ele, poderá haver “nulidades e impunidade em um futuro próximo”.

“Eu espero que até sexta-feira [18] o senador Randolfe [vice-presidente da CPI] e seus eminentes pares entreguem essas provas para que o Supremo possa preservar a cadeia de custódia, a validade das provas e que não tenhamos nulidades e impunidade em um futuro próximo”

Augusto Aras

procurador-geral da República, em entrevista à rede CNN, no dia 15 de fevereiro de 2022

Os senadores prometem reapresentar as provas à Procuradoria-Geral numa nova organização, embora destaquem que uma lista individualizada dos crimes e de suas evidências, inclusive as sigilosas, já foi apresentada há dois meses.

“As provas estão lá desde novembro. E a individualização das provas está lá desde dezembro. Imaginávamos que isso poderia ser feito pela própria PGR [Procuradoria-Geral da República], mas, se eles não fazem, nós vamos fazer”

Randolfe Rodrigues (Rede-AP)

senador, à coluna da jornalista Malu Gaspar publicada da terça-feira (15) no jornal O Globo

Das 78 pessoas a quem o relatório da CPI atribui crimes, as autoridades que têm foro privilegiado e portanto só podem ser processadas pela iniciativa de Aras são:

  • Presidente Jair Bolsonaro (PL)
  • Governador do Amazonas Wilson Lima (PSC)
  • Ministro da Saúde Marcelo Queiroga
  • Ministro da Defesa general da reserva Walter Braga Netto
  • Ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni (União Brasil-RS)
  • Ministro-chefe da Controladoria-Geral da União Wagner Rosário
  • Senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ)
  • Deputado Ricardo Barros (PP-PR)
  • Deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP)
  • Deputada Bia Kicis (PSL-DF)
  • Deputada Carla Zambelli (PSL-SP)
  • Deputado Osmar Terra (MDB-RS)
  • Deputado Carlos Jordy (PSL-RJ)

A atuação de Aras contra os senadores

Cobrado pela inação quanto ao governo federal, o procurador-geral pediu ao Supremo para requerer informações, na verdade, dos senadores que comandaram a CPI: Omar Aziz (PSD-AM), que presidiu a comissão, e Renan Calheiros (MDB-AL), que fez o relatório.

A iniciativa de Aras, nesse caso, atende a um pedido do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, feito em novembro, após a entrega do relatório da CPI. O filho de Jair Bolsonaro apresentou uma notícia-crime para apontar os possíveis crimes de prevaricação e de abuso de autoridade, pelo suposto uso de dados sigilosos na condução do depoimento do ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, aliado da família Bolsonaro. No requerimento ao Supremo, Aras quer saber “como foi obtida a cópia do depoimento, se havia-se ciência do sigilo, [e qual a] relevância do depoimento para a apuração realizada na Comissão Parlamentar de Inquérito”.

Aras reconhece na própria solicitação que a apuração sobre o uso de dados sigilosos pode beneficiar o próprio Carlos Bolsonaro, que, segundo o relatório da CPI, teria cometido o crime de incitação a práticas criminosas durante a pandemia de covid-19. “No entanto, alerte-se que a potencial responsabilização criminal dos noticiados pode ter, como consequência indireta, o reconhecimento de que a colheita das provas contra o representante fora realizada mediante abuso de autoridade”, disse o procurador-geral ao Supremo.

Randolfe Rodrigues (Rede-AP) anunciou que recolheria assinaturas para pedir o impeachment de Aras, alegando que ele exerce a função de “serviçal de Bolsonaro” e não cumpre suas funções de fiscalizar a cúpula do governo, segundo o parlamentar. Foi então que a equipe de Aras procurou os parlamentares para uma reunião, em que ficou acertada a entrega de nova organização das provas em dez dias.

Em novembro de 2021, a pedido de Rodrigues, a Comissão de Direitos Humanos do Senado convidou Aras para que ele explicasse aos parlamentares que providências já tinha tomado sobre o relatório da CPI. Ele não compareceu, mas se disse “comprometido em responder ao Senado, a tudo que o senado confiou em mim quando votou em mim 86% de uma vez, 84% de outra vez”, em referência à aprovação de sua indicação ao cargo, feita em 2019 e novamente em 2021.

O que Aras fez sobre o relatório da CPI

Acusado de se omitir diante dos crimes cometidos na pandemia, Aras alega que a Procuradoria-Geral já promove inquéritos e ações penais sobre a crise sanitária. N a véspera da instalação da CPI no Senado, por exemplo, o órgão denunciou o governador do Amazonas , Wilson Lima (PSC), acusado de peculato e organização criminosa na compra de respiradores . Réu, Lima nega as acusações.

Sobre as autoridades ainda não investigadas, Aras costuma dizer que já instaurou “ apurações preliminares ” (apurações para decidir se abre inquérito ou não) sobre diversos fatos investigados pelos senadores. Analistas do sistema de Justiça apontam, porém, que Aras se vale dessas “apurações preliminares”, que nunca resultam em inquérito efetivo, para camuflar sua inação em prol do governo. Ministros do Supremo também têm criticado esses procedimentos, que ficam fora do controle judicial.

Após receber o relatório da CPI, Aras apresentou 10 pedidos de providências ao Supremo, mas solicitou sigilo sobre os casos – no que foi atendido. Desde então, os ministros a quem os pedidos foram distribuídos (por se relacionarem com casos previamente decididos por eles) não se manifestaram.

Em meados de fevereiro, a cúpula da CPI pediu ao presidente do tribunal, ministro Luiz Fux, que transforme os pedidos em inquéritos públicos, de forma que possam ser acompanhados pela sociedade. Fux disse que vai avaliar se ele próprio , como presidente, pode tomar alguma medida ou se a função cabe aos ministros relatores.

Diante da possibilidade de conversão de suas petições em inquéritos, Aras também disse à CNN que, por enquanto, só se dirigiu ao Supremo com o intuito de “manter a cadeia de custódia da prova”. Garantir a “cadeia de custódia”, nas investigações criminais, significa registrar todo o procedimento de coleta, guarda e inspeção das provas, de forma a impedir adulterações ou uso distorcido do que foi coletado.

Segundo Helena Regina Lobo da Costa, professora de direito penal da USP (Universidade de São Paulo), a garantia da cadeia de custódia “é uma questão técnica que o Ministério Público Federal e a Polícia Federal conseguem resolver com seus instrumentos, sem precisar gastar muito tempo com isso”.

Costa também afirmou ao Nexo que a obtenção do material da CPI “foi toda legítima, com várias decisões de quebra [de sigilos] levadas ao STF [Supremo Tribunal Federal] para controle da constitucionalidade e da legalidade do procedimento”.

“De todo modo, há crimes gravíssimos, como o descumprimento de medidas sanitárias preventivas [imputado a Bolsonaro e outros], que não dependem da discussão sobre a cadeia de custódia [das provas colhidas pela comissão], porque são fatos admitidos pelos próprios membros do governo federal e até hoje defendidos por eles”, afirmou Costa.

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