Expresso

Como o convite aos militares se virou contra o TSE na eleição

Isabela Cruz

08 de maio de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)

Tribunal eleitoral buscou aproximação com Forças Armadas para conter ameaças golpistas do presidente Bolsonaro. Agora, elas têm pressionado a corte e insistido em dúvidas sem fundamento sobre o sistema de votação

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FOTO: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL – 01.ABR.2022

Braga Netto, Bolsonaro e militares fardados, todos em pé

O general da reserva Braga Netto (à esq.), então ministro da Defesa, e o presidente Jair Bolsonaro, durante cerimônia militar

A cinco meses das eleições de outubro, os resultados da participação inédita das Forças Armadas numa comissão de transparência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) começam a ser traçados. Convidados pelos ministros do Supremo atuantes da corte eleitoral como forma de conter as ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro, os militares têm se mostrado inclinados, na verdade, a endossar o discurso presidencial .

Ministros do Supremo e da corte eleitoral avaliam nos bastidores que o espaço dado aos militares no processo eleitoral, algo que Bolsonaro tem tentado expandir, foi um erro , segundo informações do jornal Folha de S.Paulo. A avaliação é compartilhada por diversos analistas políticos.

Neste texto, o Nexo retoma como militares foram parar numa comissão do tribunal de cúpula da Justiça Eleitoral e mostra o que eles têm feito nessa função, enquanto explica, com a participação de especialistas em direito e nas relações civis-militares, a função constitucional das Forças Armadas no Brasil e em outras democracias.

A cadeira oferecida aos militares

Diante das dúvidas jogadas por Bolsonaro sobre o processo eleitoral, os ministros do Supremo que atuavam no TSE em 2021 decidiram chamar as Forças Armadas para participar do processo eleitoral. A ideia era esclarecer todas as dúvidas a fim de que os militares entendessem o processo e atestassem a credibilidade do sistema eletrônico de votação, evitando assim uma escalada do discurso golpista de Bolsonaro e seus aliados mais radicais.

Analistas políticos e acadêmicos alertaram na época que a estratégia colocaria o país numa situação de refém de um aval militar . Os comandantes das Forças Armadas, assim como os ministros da Defesa, costumam dizer, em resposta, que estão comprometidos com suas funções constitucionais.

Na Comissão de Transparência das Eleições, criada naquele ano para as eleições de 2022, uma das 12 cadeiras do grupo foi disponibilizada para um indicado do governo. O general da reserva Walter Braga Netto, então ministro da Defesa, escolheu para o posto o general de Divisão do Exército Heber Garcia Portella, chefe do ComDCiber, o Comando de Defesa Cibernética do Exército, integrado por representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica .

O papel das Forças Armadas

Desde que os militares voltaram a ter forte presença na política brasileira, o que começou no governo Michel Temer (2016-2018) e se aprofundou no governo Bolsonaro, o artigo 142 da Constituição, que prevê a atuação das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem” se tornou frequente no debate público.

Bolsonaristas dizem que o artigo autoriza intervenções militares sobre o Judiciário e o Legislativo no caso de um dos Poderes “extrapolarem” seus papéis constitucionais. É o que chamam de “intervenção militar constitucional”, uma tese que também corre nos quartéis há bastante tempo. No mundo jurídico, porém, essa opção é rechaçada e sequer é objeto de debates.

“Essa é uma questão daquele tipo que não comporta nenhum tipo de dúvida. Qualquer intérprete de boa-fé da Constituição de 1988 sabe que todos os métodos clássicos de interpretação – textual, gramatical, sistemático, lógico, finalístico – confluem para a conclusão de que o artigo 142 da Constituição não confere nenhuma espécie de poder decisório ou moderador às Forças Armadas para arbitrar conflitos entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário”, afirmou ao Nexo Gustavo Binenbojm, professor titular de direito administrativo da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Confira abaixo os pontos elencados por ele.

Forças Armadas não podem ‘intervir’

MERO ÓRGÃO A SERVIÇO DOS PODERES

“As Forças Armadas não são um Poder do Estado brasileiro. Elas são um órgão do Poder Executivo a serviço dos Poderes constituídos — o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Dessa forma, quando o artigo 142 menciona a competência das Forças Armadas para a garantia dos Poderes constituídos e do regime democrático, isso deve ocorrer na forma da Constituição. Isto é, os Poderes constituídos podem eventualmente contar com o apoio subordinado das Forças Armadas para o exercício de suas competências. As Forças Armadas, porém, não têm competência para arbitrar conflitos, nem muito menos exercer Poder Moderador [acima dos demais]”

NÃO EXISTE ‘PODER MODERADOR’

“Poder Moderador só existiu no direito constitucional brasileiro na Constituição Imperial de 1824 e era outorgado ao imperador. Era a chave de todo o sistema de separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e o imperador estava acima do três porque exercia exatamente o Poder Moderador. Desde 1891, com a primeira Constituição republicana, até a Constituição de 1988, essa figura nunca mais existiu. Em nenhuma República”

QUESTÃO DE LÓGICA HIERÁRQUICA

“Quem é o comandante em chefe das Forças Armadas? O presidente da República. O presidente da República jura cumprir a Constituição. Se ele descumpre a Constituição, ele comete crime de responsabilidade. Então não são as Forças Armadas, subordinadas ao presidente, que poderão dizer, num momento de conflito, o que é ou não cumprir a Constituição. Não faria sentido, do ponto de vista sistemático, que as Forças Armadas pudessem funcionar como um árbitro de um conflito constitucional entre Poderes. A Constituição deixa muito claro que quem tem a última palavra sobre a interpretação constitucional é o Supremo Tribunal Federal, não são as Forças Armadas”

As Forças Armadas nas eleições

Binenbojm considerou “um erro” convidar as Forças Armadas para participar de comissão no TSE. “Num ambiente em que não impera a cooperação, mas a desconfiança entre os Poderes, é importante que cada Poder se mantenha dentro de suas atribuições para evitar conflitos.”

Antropóloga especialista nas Forças Armadas, a professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Adriana Aparecida Marques também considera o convite “completamente despropositado”.

Analisando por que os ministros do TSE teriam caído nesse erro, ela afirmou o seguinte ao Nexo : “desde a Nova República [1988], as Forças Armadas atuaram com tanta autonomia institucional, e os ministros também acreditam tanto na narrativa de que as Forças Armadas são uma coisa e o governo é outra, que acho que imaginaram que iriam colocar alguém que teria autonomia e que fosse apaziguar os ânimos”.

Ela afirma, porém, que distensionar as relações entre os Poderes não é papel dos militares, e destaca que os ministros do TSE “tinham instrumentos para saber que as Forças Armadas estavam nessa escalada de politização”.

“É só olharmos o processo político desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff [após o qual militares passaram a assumir o comando do Ministério da Defesa]. A partir de 2018, o que temos é uma escalada de politização das Forças Armadas. Ministro da Defesa e comandantes das Forças, que são os chefes imediatos dos militares da ativa, já tinham lançado [em 2021] uma nota falando sobre a lisura do processo eleitoral”

Adriana Aparecida Marques

antropóloga e professora do curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ, ao Nexo

Binenbojm destaca que a participação dos militares na comissão eleitoral “tem um caráter meramente consultivo, opinativo, não tem um caráter vinculante”, enfatizando que “quem tem o poder decisório é o Tribunal Superior Eleitoral”.

“Há que se esclarecer que não apenas o representante das Forças Armadas, mas todos os demais convidados a participar dessa comissão, como representantes do Ministério Público Federal, da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], participam na qualidade de observadores”, disse Binenbojm. “Então aqui ninguém pode pretender exercer competências que pela Constituição são do Poder Judiciário Eleitoral”, afirmou Binenbojm.

As primeiras frustrações

Já de partida, a escolha não ocorreu da forma como Barroso planejava. Notícias de bastidores dão conta de que ele pretendia ver no posto um almirante da Marinha, visto como referência em tecnologia da informação (o nome não é conhecido publicamente) e chegou a convidar o oficial. Braga Netto, no entanto, como ministro da Defesa e portanto chefe das três Forças, chamouPortella, oficial do Exército.

Atualmente, Braga Netto caminha para ser vice de Bolsonaro na chapa à reeleição, segundo o próprio presidente. Tendo deixado o ministério para poder concorrer em outubro, ele está atuando como assessor na Presidência e continua participando de reuniões do governo – inclusive de encontros que trataram do processo eleitoral.

Além de Portella, o general da reserva Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa, ainda foi chamado em 2021 para ser diretor-geral do TSE, numa decisão dos ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, que já se planejavam para comandar o tribunal eleitoral em 2022. Inicialmente Azevedo e Silva aceitou o convite, mas depois desistiu alegando motivos pessoais.

A tensão progressiva

Desde o início do funcionamento da Comissão de Transparência Eleitoral no TSE, Portella levou ao tribunal uma série de questionamentos sobre diversos aspectos da contabilização dos votos.

Inicialmente, os questionamentos pareciam ter caráter mais técnico. Na quarta-feira (4), porém, uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que os 88 questionamentos enviados pelas Forças Armadas ao TSE em oito meses de trabalho repetem o discurso de Bolsonaro , insistindo numa série de dúvidas sem fundamento sobre o sistema eletrônico de votação e o processo de apuração dos votos.

O TSE respondeu detalhadamente aos questionamentos, em centenas de páginas explicativas, ainda que vários deles se refiram a processos já esclarecidos pelo tribunal. Nesta segunda-feira (9), foi publicada mais uma leva de respostas a sugestões feitas pelos militares. O documento apontou erros e redundâncias nas propostas.

Em meados de abril, Barroso, que sempre elogia a atuação das Forças Armadas no período pós-redemocratização, já tinha mudado de tom em relação aos militares, num evento acadêmico online de uma universidade alemã. Se antes o ministro dizia que as ameaças de Bolsonaro “mais revelam limitações cognitivas e baixa civilidade do que propriamente um risco real [à democracia]”, desta vez Barroso afirmou que as Forças Armadas estariam “ sendo orientadas para atacar o processo [eleitoral] e tentar desacreditá-lo”.

Barroso havia enumerado investidas do bolsonarismo contra as instituições do país, como o desfile militar no dia da votação da PEC (proposta de emenda à Constituição) do voto impresso, mas generais o acusaram de fazer acusações sem provas. Oministro da Defesa disse que a fala foi uma “ ofensa grave ”, e colegas fardados o seguiram. Um deles chegou a afirmar que Barroso tinha cometido crime militar .

Nesta segunda-feira (9), veio a público que o atual ministro da Defesa, general da reserva Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, solicitou ao TSE no final de abril que ele próprio centralize a comunicação entre o TSE e as Forças Armadas.

As demandas de Bolsonaro

Bolsonaro tem aproveitado os questionamentos das Forças Armadas para aprofundar sua cruzada contra o processo eleitoral. As Forças Armadas, por sua vez, nada fizeram para desmentir as especulações levantadas sobre a credibilidade do sistema.

Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump, inspiração para Bolsonaro, adotou a mesma estratégia, que acabou na invasão do Congresso americano por apoiadores do presidente, que havia fracassado em conseguir a reeleição. No Brasil, muitos analistas temem que o presidente tente um golpe caso saia derrotado das urnas.

Durante uma live em fevereiro, o presidente disse que as Forças Armadas teriam encontrado “diversas vulnerabilidades” no sistema eleitoral. “Nosso pessoal do Exército, da guerra cibernética, buscou o TSE e começou a levantar possíveis vulnerabilidades. Foram levantadas várias, dezenas de vulnerabilidades”, disse o presidente.

A cúpula do TSE reagiu. Decidiu tornar públicas as perguntas dos militares e as respostas fornecidas pelo tribunal, “diante do vazamento da existência de perguntas que foram formuladas, bem como do próprio teor das perguntas”, para mostrar que a história das “vulnerabilidades” contada por Bolsonaro era inventada.

No final de abril, o presidente disse que as Forças Armadas sugeriram ao TSE uma apuração paralela de votos por militares, e defendeu a adoção da medida. O plano, segundo o presidente, seria fazer “ uma ramificação um pouquinho à direita” no duto que alimenta os computadores do TSE, para que os dados das seções eleitorais chegassem também a um computador das Forças Armadas.

No documento publicado pelo TSE nesta segunda (9), não há qualquer referência a proposta de apuração paralela feita pelas Forças Armadas.Os computadores da Justiça Eleitoral, para dar conta dos milhões de votos pelo país, ocupam uma sala inteira – que não é secreta como diz Bolsonaro.

As democracias pelo mundo

Gustavo Binenbojm e Adriana Marques foram assertivos em dizer que nenhuma democracia do mundo tolera submeter seu processo eleitoral ou qualquer dos Poderes republicanos (Executivo, Legislativo e Judiciário, incluindo a Justiça Eleitoral) ao controle de Forças Armadas.

“Os militares não têm papel nenhum a desempenhar num processo eleitoral. Isso é absolutamente incompatível com o regime democrático. É mais uma jabuticaba brasileira que inventaram, da mesma ordem de colocar militares como assessores no Supremo, como fez o ministro Dias Toffoli [em 2018, quando ele exercia a presidência do tribunal]”, disse Marques.

Binenbojm também afirmou que “não há exemplo no direito comparado democrático de organização, fiscalização e certificação de eleições pelas Forças Armadas”. “Se você procurar nas grandes democracias ocidentais da Europa, da América do Norte, da América Latina até, não vai encontrar exemplos bem-sucedidos de democracias estáveis que tenham esse modelo, não existe isso”, disse ele.

Binenbojm reforçou: “colocar as Forças Armadas para fiscalizar o processo eleitoral é na verdade criar potenciais conflitos num sistema já pacificado, já em funcionamento, que vinha prestando serviços relevantes à democracia brasileira”.

ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto informava que Paulo Sérgio Nogueira é um general da ativa. Na verdade, ele foi transferido para a reserva em abril de 2021. A informação foi corrigida no dia 10 de agosto de 2022, às 19h13.

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