Expresso

Por que o governo foi tão errático ao definir uma reação à crise

Marcelo Roubicek

30 de junho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)

‘Pacote de bondades’ busca ampliar benefícios sociais, depois de meses de políticas voltadas para combustíveis. O ‘Nexo’ ouviu economistas sobre o que isso diz a respeito da gestão de Bolsonaro

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FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Uma mulher negra ergue as palmas da mão diante da câmera, e nelas está escrito a palavra "fome". Ela está na frente de uma parede com o nome e o logo do Banco Central

Protesto contra a fome na frente do Banco Central

O Senado aprovou na quinta-feira (30) o “ pacote de bondades ” articulado pelo governo de Jair Bolsonaro. A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) inclui medidas como expansão do Auxílio Brasil e criação de um “voucher caminhoneiro” de R$ 1.000 por mês. O texto agora será analisado pela Câmara. A proposta é que as políticas tenham validade até o fim de 2022.

O pacote será bancado por fora do teto de gastos , regra que limita as despesas do governo a um nível pré-determinado. Para isso, o Congresso terá que decretar, por meio da PEC, um estado de emergência cuja legalidade é questionada por especialistas. Diante da inflação alta e do aumento da pobreza no país, o Executivo tenta melhorar o cenário social e econômico no ano em que Bolsonaro tenta a reeleição.

Antes de propor a ampliação de benefícios sociais, o governo focava em tentar aliviar os preços de combustíveis, sobretudo com redução de tributos. Neste texto, o Nexo relembra a trajetória errática do governo até definir essas medidas. Também ouve economistas sobre o que essa guinada diz sobre a gestão de Bolsonaro enquanto formuladora de políticas públicas. Para eles, as decisões sem convergência são sinais de dificuldades para elaborar políticas – e a decisão de bancar as medidas por fora do teto deve gerar efeitos negativos.

O ‘pacote de bondades’

AUXÍLIO BRASIL: AUMENTO E FILA ZERADA

O senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), relator do projeto, disse que o pacote vai zerar a fila do Auxílio Brasil: a partir de julho, de acordo com o parlamentar, 1,6 milhão de famílias que aguardam o benefício serão incluídas para recebê-lo. O auxílio também passa de R$ 400 para R$ 600 – o que já foi anunciado por Bolsonaro na sexta-feira (24). O gasto previsto até o fim de 2022 é de R$ 26 bilhões.

VOUCHER CAMINHONEIRO

A proposta prevê pagamento de uma bolsa de R$ 1.000 mensais a caminhoneiros autônomos, uma forma de beneficiar a categoria num momento de alta do diesel. Esses profissionais precisam estar cadastrados em registro nacional até 31 de maio de 2022 para receber (a data anterior à apresentação da PEC busca evitar “recebimento indevido”). Gasto até o fim de 2022: R$ 5,4 bilhões.

BENEFÍCIO A TAXISTAS

Após negociação no Senado, foi incluído no texto um benefício a ser pago a taxistas, cujo valor e operacionalização ainda não foi definida. Gasto até o fim de 2022: R$ 2 bilhões.

VALE-GÁS EM DOBRO

O valor do benefício, criado no final de 2021 para ajudar famílias de baixa renda a ter acesso ao gás de cozinha, passa de R$ 53 a cada dois meses para R$ 120 por bimestre. Gasto até o fim de 2022: R$ 1 bilhão.

Alimenta Brasil

Durante discussão no Senado, foi incluído o valor de R$ 500 milhões para o programa Alimenta Brasil, de distribuição de alimentos para famílias de baixa renda.

GRATUIDADE A IDOSOS NO TRANSPORTE

O texto inclui compensação ao setor de transporte para atender à gratuidade de passageiros idosos nos transportes públicos urbanos e metropolitanos. Gasto até o fim de 2022: R$ 2,5 bilhões.

SUBSÍDIOS À CADEIA DE ETANOL

Bezerra Coelho incluiu uma compensação financeira à cadeia produtiva do etanol. A ideia é promover a competitividade do produto frente ao diesel. Gasto até o fim de 2022: R$ 3,8 bilhões.

DE ONDE VEM O DINHEIRO

Bezerra Coelho afirmou que o dinheiro virá das receitas com a privatização da Eletrobras – cerca de R$ 26 bilhões – e de “repasses de dividendos adicionais ou complementares” à União. Os gastos serão passados por fora do teto de gastos. O texto prevê a decretação de estado de emergência pela crise dos combustíveis para permitir que os recursos estourem o teto em 2022. O reconhecimento de estado de emergência – cuja legalidade é questionada por especialistas – também dribla a legislação eleitoral . A criação de benefícios é proibida em ano de pleito, exceção feita a casos de emergência ou calamidade pública.

R$ 41,2 bilhões

é o gasto total estimado com as medidas do pacote

Crise, inflação e combustíveis

O avanço inflacionário no Brasil teve início a partir de meados de 2020 . O cenário se agravou em 2021, ano em que os preços subiram 10% . No primeiro semestre de 2022, a alta persistiu e a inflação quebrou recordes .

Os aumentos foram puxados principalmente pelos combustíveis, pressionados pela alta global do petróleo no contexto da guerra na Ucrânia. A Petrobras mantém a política de repassar os movimentos internacionais do barril aos preços praticados nas refinarias.

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 08.ABR.2022

No primeiro plano, uma placa de preços de um posto de combustíveis. No fundo, a estrutura do posto da Petrobras, com as bombas e carros.

Posto de gasolina no Rio de Janeiro

Bolsonaro culpou governadores e o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) – principal tributo estadual – pela alta de preços. A tese é amplamente rejeitada por economistas.

Nesse cenário, o governo sugeriu diferentes iniciativas para atacar a crise, antes de chegar no “pacote de bondades” que começou a ser analisado pelo Congresso no fim de junho. Abaixo, o Nexo relembra quais foram:

Ações anteriores

PEC KAMIKAZE

Em fevereiro de 2022, o Senado começou a discutir uma PEC articulada pelo Executivo para permitir que o governo reduzisse ou até zerasse tributos federais sobre combustíveis e gás de cozinha, sem nenhuma medida de compensação – o que driblaria a Lei de Responsabilidade Fiscal . A medida valeria para 2022 e 2023. Os estados e municípios teriam a mesma possibilidade. O texto também criava um auxílio a caminhoneiros e ampliava o vale-gás. A proposta foi apelidada de “ PEC Kamikaze ”, já que teria impacto fiscal previsto de R$ 100 bilhões. As cifras seriam passadas por fora do teto de gastos. O texto não foi adiante, mas está sendo reciclado para incluir o novo “pacote de bondades” em junho.

ICMS, PARTE 1

Como parte da campanha contra os estados, o governo de Bolsonaro e seus aliados aprovaram, em março de 2022, uma lei que muda a cobrança do ICMS sobre combustíveis, determinando recolhimento como um valor fixo por litro, e não uma alíquota pelo total da compra. O projeto também zera tributos federais sobre diesel, querosene de aviação e gás de cozinha. A lei coloca ainda que a cobrança de ICMS sobre combustíveis deverá ser a mesma em todos os estados. Em junho, onze governadores protocolaram no Supremo Tribunal Federal um pedido para derrubar o texto .

ICMS, PARTE 2

O Congresso também aprovou uma lei complementar que coloca um teto no ICMS cobrado pelos estados sobre combustíveis. Na prática, o texto força os estados a reduzirem o imposto para a faixa de 17% a 18%, sem receber compensação. Antes, alguns estados cobravam ICMS de mais de 30% sobre a gasolina, por exemplo. A lei foi sancionada por Bolsonaro em 23 de junho. Quatro dias depois, governadores de onze estados e do Distrito Federal abriram ação no Supremo para tentar derrubar a nova lei .

ICMS, PARTE 3

No início de junho de 2022, Bolsonaro anunciou um pacote de medidas em que propunha eliminar tributos federais sobre gasolina e etanol, além de criar um fundo de compensação para que os estados pudessem zerar o ICMS sobre diesel e gás de cozinha. A proposta foi abandonada após algumas semanas, abrindo caminho para o “pacote de bondades”.

INVESTIDA SOBRE A PETROBRAS

Em paralelo às medidas tributárias sobre combustíveis, o governo Bolsonaro promoveu um cerco à Petrobras , fazendo críticas frequentes à empresa, seus lucros e sua política de preços – mas raramente fazendo menção ao fato de que a União é controladora da petroleira e também ganha com seus resultados. Somente em 2022, o mandatário demitiu dois presidentes da empresa, embora tenha escolhido, na primeira ocasião, um substituto que defendesse a mesma política de preços. Ainda não se sabe se Caio Paes de Andrade, novo executivo-chefe da empresa, irá segurar ou não os preços de combustíveis.

Os efeitos das diferentes medidas

Até junho de 2022, o foco das ações do governo na crise havia sido tentar conter os preços de combustíveis – principalmente via mudanças tributárias e investidas na Petrobras. O novo “pacote de bondades” de Bolsonaro representa, nesse sentido, uma guinada para políticas voltadas mais diretamente para a população.

Ao Nexo , Renata Moura Sena, professora de economia da PUC-SP, acredita que os benefícios diretos para a população são políticas preferíveis aos subsídios sobre combustíveis. “Aumentar o Auxílio Brasil e o vale-gás é muito importante, porque as pessoas estão em vulnerabilidade”, afirmou. “Isso precisa ser feito, a gente precisa tirar a população da insegurança alimentar e precisa subsidiar a compra do gás por essas pessoas”.

A professora da PUC afirmou que os subsídios aos combustíveis podem ter efeitos colaterais negativos. Um deles é ambiental, já que se trata de um gasto com combustíveis poluentes, em detrimento de uma política de descarbonização.

Além disso, ela afirmou que as políticas sobre combustíveis tendem a beneficiar mais a população que têm carro – apesar dos efeitos indiretos sobre o restante da população, por causa da alta dependência da economia brasileira com o transporte rodoviário. E a população que têm veículos são, geralmente, pessoas com renda mais alta.

A economista questionou, no entanto, o fato de que as medidas têm duração prevista somente até o final de 2022, e que o governo não apresentou planos para depois da virada do ano. “Depois de dezembro, o que vai acontecer com essas pessoas? Elas vão voltar para a insegurança alimentar? Elas vão perder [o aumento do] auxílio gás?”, afirmou.

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 27.MAI.2021

Homem está sentado sobre um saco de lixo cheio de latas. Ele usa máscara e olha para o chão, cabisbaixo. Ao seu redor, outras pessoas de máscara também esperam.

Morador de rua espera em fila para receber a vacina contra a covid-19

Joelson Sampaio, professor de economia da FGV-Eesp (Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), disse que políticas voltadas para combustíveis e medidas de ampliação de benefícios sociais têm efeitos diferentes.

“São políticas que atacam coisas diferentes, mas que têm um componente em comum, que é a inflação”, disse. “Os subsídios aos combustíveis ajudam muito na questão da inflação dos combustíveis. Mas não resolve a inflação para a população em geral, porque a inflação de alimentos vem pressionando também há muito tempo”, afirmou.

O professor da FGV, no entanto, disse que a manobra para aumentar os benefícios é “arriscada”. “Pode ter um custo fiscal que talvez o governo tivesse que ter pensado melhor”, afirmou. Ou seja, a ampliação dos gastos com desrespeito às regras orçamentárias gera maior incerteza sobre a capacidade do governo de honrar seus compromissos – e isso pode ter efeitos negativos, como pressão sobre os juros e até sobre a inflação. Sampaio também critica o momento em que a medida é proposta: “O ponto sensível do governo é que ele está usando isso num ano eleitoral. E isso é ruim”. A menos de 100 dias da eleição, Bolsonaro se mantém em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As definições erráticas na crise

Com relação ao caminho errático percorrido pelo governo até chegar ao “pacote de bondades”, Moura Sena, da PUC, afirmou que isso mostra “que o governo não é um bom elaborador de políticas públicas”.

“Em termos de políticas sociais, o que este governo não conseguiu fazer foram políticas públicas bem planejadas e bem estruturadas e sustentáveis – de tal forma que possam seguir para os próximos governos”, afirmou. “Por que [as medidas] não foram tomadas antes, se as pessoas já estão em insegurança alimentar desde o final do ano passado? Não houve uma estruturação em um pensamento voltado para essas políticas. E até mesmo poderíamos dizer [que não houve] interesse para essas políticas. E agora vai ser feito muito por conta do impacto eleitoral”.

A economista também criticou a falta de planejamento do ponto de vista orçamentário e o uso de recursos por fora do teto de gastos – o que gera efeitos de aumento de incertezas sobre a economia brasileira. “O que aparenta é que o governo está tratando só daquilo que é emergencial e pontual para agora, sem se preocupar com os impactos e com a sustentabilidade disso que está sendo feito”.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 22.OUT.2021

Jair Bolsonaro (à esq.) e Paulo Guedes sentados atrás de uma mesa. Bolsonaro fala em um microfone. Guedes, de máscara, ajeita o encaixe no rosto.

Jair Bolsonaro (à esq.) e Paulo Guedes em pronunciamento à imprensa

Sampaio, por sua vez, disse que o governo “tem uma dificuldade de prioridade econômica”. “Ele acaba demorando muito para tomar decisões. E aí essas decisões acabam sendo ineficazes ou muito ineficientes quando elas surgem”, afirmou.

O professor da FGV, no entanto, não descartou uma possível estratégia política por trás dessas decisões erráticas e das apostas em políticas diferentes. “Ele demora, dá a impressão que se perde, mas com isso ele ganha tempo”, disse.

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