Expresso

Por que é um equívoco minimizar os dados da fome no Brasil

Marcelo Roubicek

29 de agosto de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)

Bolsonaro questiona pesquisas e diz que ninguém está ‘pedindo pão na porta da padaria’. O ‘Nexo’ apresenta estudos e conversa com uma especialista sobre por que não há lógica em tentar menosprezar o problema

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FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 11.JUN.2022

Dois homens com cobertores ao lado de uma barraca. Ao fundo, um pilar do viaduto com uma arte dizendo "Fome" e um lambe de Bolsonaro andando de jet ski

Moradores de rua debaixo de viaduto no centro de São Paulo

“Alguém já viu alguém pedindo um pão na porta, ali, no caixa da padaria? Você não vê ”, disse Jair Bolsonaro em entrevista ao programa Pânico, da Jovem Pan, na sexta-feira (26). No debate da TV Bandeirantes no domingo (28), o presidente questionou as pesquisas sobre a fome no país, chamando os números de “exagerados” – ele falou também em “demagogia”.

A contestação dos números da fome no país representa mais uma frente negacionista de Bolsonaro, que já questionou os números da pandemia de covid-19 e os dados do desmatamento no Brasil .

Neste texto, o Nexo mostra algumas das principais pesquisas sobre a fome no Brasil em 2022. Também conversa com uma especialista que explica por que os números divergem, e por que essa divergência não significa que seja possível minimizar o quadro da insegurança alimentar no país.

Os dados da Penssan

Em 8 de junho de 2022, a Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) publicou dados sobre a insegurança alimentar no Brasil. Os números fazem parte do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

O estudo entrevistou pessoas em 12.745 domicílios em 577 diferentes municípios brasileiros, entre novembro de 2021 e abril de 2022. As perguntas foram feitas com base na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, adotada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A pesquisa investiga a insegurança alimentar – conceito mais amplo que a fome, já que leva em conta o acesso a alimentos em quantidade e qualidade. O levantamento classifica a insegurança alimentar em três níveis:

  • Grave , quando a pessoa convive com a fome dentro de casa;
  • Moderada , quando a qualidade dos alimentos está comprometida e a quantidade não é suficiente para todos da família;
  • Leve , quando há redução da qualidade dos alimentos consumidos por medo de faltar comida em casa.

A conclusão é que a fome (insegurança alimentar grave) no Brasil chegou a seu pior patamar desde os anos 1990 .

33,1 milhões

era o número de pessoas passando fome no Brasil no início de 2022, segundo a Rede Penssan

A insegurança alimentar moderada atingiu outras 32,3 milhões de pessoas, segundo a pesquisa. Já a insegurança alimentar leve chegou a 59,7 milhões de pessoas. Ao todo, portanto, são 125 milhões de pessoas com algum tipo de insegurança alimentar no país.

Os dados da ONU

Em 6 de julho de 2022, a FAO – órgão da ONU para a alimentação e agricultura – publicou um relatório sobre o panorama da insegurança alimentar e da nutrição no mundo. O estudo levanta os dados médios da fome no Brasil entre 2019 e 2021, possibilitando a comparação com o triênio de 2014 a 2016.

Para chegar a esses dados, o órgão usa microdados obtidos em pesquisas em cada país – incluindo dados obtidos pelo Gallup World Poll em mais de 140 países, via questionários.

A FAO classifica a insegurança alimentar em duas categorias: grave ou moderada. Não existe, portanto, a categoria do quadro leve, como no caso da Rede Penssan.

A insegurança alimentar moderada ocorre quando as pessoas não têm certeza se vão ter acesso a alimentos suficientes e, então, diminuem a quantidade ou qualidade da comida.

No caso da insegurança alimentar grave, são pessoas que ficaram sem comida ou deixaram de comer por um dia no último ano. Trata-se de um quadro mais severo, mais diretamente associado à ideia de fome.

Segundo a pesquisa da ONU, o número de pessoas no Brasil com insegurança alimentar grave entre 2019 e 2021 quase quadruplicou em relação ao período de 2014 a 2016, quando 3,9 milhões de pessoas passavam fome no país.

15,4 milhões

era o número de pessoas passando fome no Brasil entre 2019 e 2021, segundo a FAO

As pessoas com insegurança alimentar moderada entre 2019 e 2021, segundo a ONU, eram 61,3 milhões no Brasil.

Os dados do FGV Social

Em 25 de maio de 2022, o FGV Social (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas) publicou o estudo “Insegurança Alimentar no Brasil: Pandemia, Tendências e Comparações Globais”, coordenado pelo economista Marcelo Neri. A pesquisa mostra os dados da fome no país em 2021.

A pesquisa se baseia em informações do Gallup World Poll , instituição que desde 2006 compila dados referentes ao desenvolvimento humano no Brasil e outros cerca de 160 países. O Gallup World Poll aplica questionários padronizados em cada um desses locais, em indivíduos acima de 15 anos.

A partir do processamento desses dados, o estudo mostra que a insegurança alimentar no Brasil atingiu em 2021 o maior número na série histórica. Essa insegurança é identificada quando, em algum momento nos últimos 12 meses, faltou dinheiro para alimentar a si mesmo ou a família.

36%

foi a parcela dos brasileiros com insegurança alimentar em 2021, segundo o FGV Social. A média global foi de 35%

Considerando que a população brasileira foi de 212,7 milhões em 2021, segundo estimativa do IBGE, o número representaria quase 77 milhões de pessoas. De acordo com a pesquisa do FGV Social, o quadro brasileiro de insegurança alimentar afeta principalmente mulheres e crianças de renda baixa .

O questionado estudo do Ipea

Em agosto de 2022, o Ipea lançou um estudo intitulado “Expansão do programa Auxílio Brasil: uma reflexão preliminar”. A pesquisa é assinada por Erik Alencar de Figueiredo, presidente do instituto.

Além de enaltecer os impactos do Auxílio Brasil – programa criado por Bolsonaro para substituir o Bolsa Família – sobre a pobreza, o estudo também questiona levantamentos que mostram o crescimento da fome no Brasil.

“Pesquisas recentes têm destacado o crescimento da prevalência de desnutrição e insegurança alimentar no país. Contudo, de forma surpreendente, esse crescimento não tem impactado os indicadores de saúde ligados à prevalência da fome, o que contraria frontalmente a literatura especializada”, diz o documento.

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 27.MAI.2021

Homem está sentado sobre um saco de lixo cheio de latas. Ele usa máscara e olha para o chão, cabisbaixo. Ao seu redor, outras pessoas de máscara também esperam.

Morador de rua espera em fila para receber a vacina contra a covid-19

Basicamente, o estudo do Ipea utiliza dados do DataSus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) para investigar o registro de sintomas ligados à desnutrição no país. “Se os dados divulgados estiverem mesmo corretos e a insegurança alimentar tiver crescido, ela parece não impactar os indicadores de saúde da população brasileira relacionados diretamente à má nutrição”, afirma o estudo em outro trecho. Ou seja, isso indicaria que o quadro nacional da fome não seria tão grave quanto afirmam outras pesquisas, como as citadas acima.

Uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em 22 de agosto mostrou que o estudo abriu uma crise interna no Ipea. Isso porque a pesquisa não passou pelo parecer de outros pesquisadores e sequer foi discutida com outros integrantes do instituto. O caso abriu suspeita de aparelhamento do Ipea , visando favorecer a campanha de reeleição de Bolsonaro.

Em nota , a Afipea (Associação dos Funcionários do IPEA) disse que o estudo assinado por Figueiredo “desrespeita frontalmente os protocolos internos normatizados” e que sua publicação “viola os dispositivos instituídos para regular a conduta dos agentes públicos no período eleitoral”. Ainda segundo a entidade: “a utilização da instituição para a produção subliminar de propaganda governamental em período de defeso eleitoral configura explícito abuso de poder político, devendo ser coibida pelas autoridades eleitorais competentes”.

O Nexo não obteve o posicionamento oficial do Ipea até a noite de segunda-feira (29).

Por que não faz sentido questionar os dados da fome

Vanessa Daufenback, doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora da Rede Penssan, afirmou ao Nexo que as divergências entre os resultados das três pesquisas mencionadas acima se dão por questões metodológicas. Essas diferenças tornam os estudos incomparáveis entre si.

São bases de dados diferentes, construídas com perguntas distintas e com objetivos que não são os mesmos. Os critérios usados para definir o que é fome e o que é insegurança alimentar também são diversos.

Por exemplo, os dados da Gallup World Poll, utilizados pelo FGV Social, têm como objetivo mostrar o cenário da fome em diversos países do mundo. Para isso, utiliza critérios diferentes de insegurança alimentar do que aqueles usados pela Rede Penssan no Brasil.

Em outro exemplo, o critério da FAO enquadra pessoas em situações mais críticas na categoria de fome, quando feita a comparação com dados da Rede Penssan. “O ‘sarrafo’ é mais alto”, disse Daufenback.

FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 24.JUN.2021

Um homem de boné segura uma marmita e come de cabeça baixo. Ele está debaixo de um viaduto.

Homem come refeição recebida por doação debaixo de viaduto no Rio de Janeiro

Essas diferenças, portanto, partem de escolhas de cada um dos institutos. Mas elas não anulam as conclusões convergentes das pesquisas.

“Por mais que o presidente questione o Inquérito Vigisan [a pesquisa da Rede Penssan] – porque ele acha que é tendencioso –, os outros inquéritos também apontam um aumento da fome”. “Todos eles têm metodologias seguras, não são passíveis de questionamento. O nível de confiabilidade é muito alto”, disse a pesquisadora.

A exceção, nesse sentido, seria o estudo do Ipea, segundo Daufenback. O primeiro motivo, para a pesquisadora, é que o DataSus é subnotificado, então não seria correto usar essas bases como fonte primária para esse tipo de levantamento.

E o segundo motivo é que não seria possível fazer uma correlação direta entre determinados sintomas e a desnutrição. Embora se saiba que desnutrição pode levar a determinados quadros, “a criança pode ter dado entrada no hospital por outro motivo”, afirmou a pesquisadora. Portanto, nem sempre a internação com determinados sintomas acontece por causa de falta de comida.

O problema de minimizar a fome

Para a pesquisadora da USP e da Rede Penssan, há dois principais problemas em minimizar os dados da fome no Brasil. O primeiro é que “além de um diagnóstico impreciso, você vai deixar no escuro essas pessoas que passam por fome intensa”. Ou seja, corre-se o risco de negligenciar as pessoas que correm risco de fome, ou que não se encaixam em uma definição específica de fome. “Você não faz políticas públicas para que as pessoas evitem chegar nessa situação extrema de fome” – situação essa simbolizada pela imagem das pessoas pedindo pão em frente à padaria.

O segundo risco tem relação com a forma como se olha para os dados da fome no país. “Mesmo que Bolsonaro diga que tem menos gente passando fome, ele dá a impressão que isso é aceitável”, disse Daufenback. Ou seja, é como se 33 milhões de pessoas passando fome fosse muito, mas 15 milhões fosse aceitável.

Na avaliação da pesquisadora, Bolsonaro minimiza o problema da fome tanto por uma razão eleitoral, como para evitar questionamentos maiores à alimentação no país como um todo. “Quanto mais se expande o limiar da fome, mais se questiona a forma como os alimentos são produzidos, comercializados e acessados”, disse.

Nesse sentido, Daufenback avalia que as principais políticas públicas de combate à fome em 2022 têm caráter “de caridade”. O Auxílio Brasil, para a pesquisadora, segue essa lógica. Mas com um problema adicional: os R$ 600 são insuficientes para comprar uma cesta básica na maior parte do país, segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS

Mulher negra com máscara, face shield e luvas está parada na rua segurando uma panela vazia

Residente de Paraisópolis (São Paulo) segura panela vazia em protesto contra a fome

Em 2020 e 2021, o Brasil teve o auxílio emergencial, maior programa de transferência de renda da história do país. Mas a condução das políticas sociais na crise sanitária não impediu que o país entrasse em um grave quadro de insegurança alimentar – foi o que disse ao Nexo o economista Marcelo Neri, do FGV Social, em entrevista no início de junho de 2022.

“Talvez a gente tenha feito as políticas de transferência de renda – que tínhamos uma excelente base no Brasil – de uma maneira um tanto quanto instável”, afirmou. “Fomos bastante generosos no auxílio emergencial em 2020. Mas a gente saiu de um auxílio que em nove meses dava nove anos de Bolsa Família para uma interrupção do auxílio em 2021 [nos primeiros três meses]. Fomos do céu ao inferno muito rapidamente, isso tendo a pandemia como pano de fundo. De alguma forma, a política pública, em particular a política de combate à pobreza, está aí para suavizar flutuações. Talvez ela tenha exacerbado essas flutuações. Esse é um primeiro ponto”, disse Neri.

Outro ponto apontado pelo economista foi a interrupção das aulas no contexto da covid-19. “A interrupção das aulas obrigou as mulheres a ficarem com as crianças, interrompeu um programa de insegurança alimentar muito importante, que é merenda escolar. Essa foi uma segunda falha de política possível”, afirmou. “A pobreza brasileira, mesmo com Bolsa Família, Auxílio Brasil e semelhantes, é essencialmente infantil”, disse o economista do FGV Social.

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