Como o Brasil pode voltar a ser exemplo de vacinação infantil
Ana Elisa Faria
20 de outubro de 2022(atualizado 06/02/2024 às 10h59)Representantes de sociedades médicas e organizações listam ao ‘Nexo’ nove medidas capazes de ajudar o país a reverter o cenário da baixa cobertura vacinal em crianças
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Garoto é vacinado durante a Campanha Nacional de Vacinação contra a poliomielite e o sarampo
O Brasil, país que já foi exemplo para o mundo em vacinação com o sucesso do PNI (Programa Nacional de Imunizações), caiu de patamar devido aos baixos números de cobertura vacinal infantil, que estão em queda desde 2015.
Durante quase meio século de existência, o plano de vacinação foi o responsável pela erradicação e pelo controle de uma série de doenças endêmicas, além da elevação da expectativa de vida dos brasileiros. Em 2020, no entanto, o país registrou o pior índice de imunização em mais de 25 anos, o que afetou a vacinação contra doenças como poliomielite , sarampo , caxumba e rubéola.
Neste texto, o Nexo apresenta um breve diagnóstico desse problema e traz nove possíveis medidas que podem ajudar a reverter o cenário, segundo as análises de três especialistas da área. São elas:
Paradoxalmente, a diminuição da cobertura vacinal está relacionada ao êxito das iniciativas de imunização do país. Há toda uma geração que não teve de lidar com surtos das doenças que a maioria das vacinas do PNI previne. Por isso, muitos pais, mães e responsáveis deixam de vacinar as crianças. Nanci Silva descreve a situação: “a vacina sofre com o seu próprio sucesso”.
“As pessoas não veem determinadas patologias hoje e, assim, acreditam que elas não existem mais, porém, a gente não as enxerga justamente por causa da vacinação. Não vemos pólio, sarampo e tétano por causa de três vacinas”
A cobertura para tuberculose e a chamada vacina pentavalente, que cobre infecções como difteria, tétano e coqueluche, entre outras, despencou de 94,9%, em 2014, para 69,6%, em 2019, de acordo com um levantamento da Folha de S.Paulo a partir de dados do PNI.
A partir de 2020, a pandemia de covid-19 impactou a vacinação de rotina, reduzindo consideravelmente a cobertura vacinal de diversas doenças, que ressurgiram ou tiveram os números piorados pela ausência de doses ou pelo medo das famílias de irem aos postos de saúde durante as fases mais críticas do isolamento social.
Outro fator que contribui para a queda da cobertura vacinal é o aumento dos movimentos antivacina que, apesar de pequenos no Brasil, mobilizam minorias vocais que divulgam teorias conspiratórias acerca de riscos infundados na imunização de crianças. São movimentos que também se intensificaram durante a pandemia.
As notícias falsas sobre o tema também impactam a imunização. No caso da vacina tríplice viral – usada contra sarampo, rubéola e caxumba –, a disseminação de um estudo do final da década de 1990 é até hoje usado para relacionar o imunizante ao mito de que a vacina causa autismo .
21,1 milhões
de mortes foram evitadas no mundo entre 2000 e 2017 por causa da vacina contra o sarampo, segundo a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde)
A poliomielite, doença grave que causa paralisia, especialmente nas crianças, já foi considerada erradicada, mas voltou a preocupar recentemente com o surgimento de novos casos ao redor do mundo e a crescente queda da cobertura vacinal em alguns países.
Desde 1994, a guerra contra a pólio havia sido considerada vencida a nível global, e a doença não era mais uma fonte de estresse. No Brasil, a diminuição da cobertura se acentuou e colocou o país em alerta.
Na campanha de imunização contra a doença em 2022, o Ministério da Saúde tem como meta vacinar 95% da população com menos de 5 anos. Mas, até o dia 17 de outubro, apenas 65% das crianças nessa faixa etária haviam tomado as doses – a menor adesão em 40 anos .
Por todos os dados apresentados, e sob o risco de enfermidades como a poliomielite retornar e os casos de sarampo, que já voltou a circular pelo Brasil, aumentarem ainda mais, é urgente a reversão dessa situação.
Os especialistas ouvidos pelo Nexo destacam que o país pode reverter esse cenário com algumas ações que estão ao alcance dos governos, se houver vontade política. Confira abaixo.
Uma das formas de ampliar a vacinação é por meio da busca ativa de famílias para a atualização da caderneta das crianças. “É preciso ir onde o povo está”, fala Nanci Silva. Para isso, diz ela, é fundamental ter agentes comunitários de saúde focados nisso. A estratégia dessa procura planejada e direcionada, por meio de ligações telefônicas ou visitas domiciliares, pode ser realizada em conjunto com assistentes sociais, a partir do cadastro familiar no CRAS (Centro de Referência da Assistência Social).
O trabalho desses profissionais, que fazem parte do PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde), é essencial porque os agentes selecionados fazem parte das comunidades locais, o que permite a criação e o fortalecimento de vínculos com a população a ser atendida. Eles são acompanhados e orientados por enfermeiros e supervisores lotados em UBS (Unidades Básicas de Saúde).
Cristina Albuquerque ressalta a importância de os agentes de saúde trabalharem “junto com a educação infantil”. “Algumas unidades da federação estão ampliando esse modelo. A equipe de saúde vai até a escola conversar, fala com os pais, marca um dia e vacina as crianças”, conta. Ela cita uma experiência de busca ativa de sucesso que o Unicef fez recentemente em creches de Campina Grande, na Paraíba.
É consenso entre os profissionais ouvidos pelo Nexo que a realização de uma campanha nacional de vacinação coordenada é imprescindível. Ricardo Queiroz Gurgel diz que o governo federal é o principal personagem dessa história, mas que as instâncias estaduais e municipais também precisam demonstrar que a vacina é uma prioridade.
O Ministério da Saúde, opina ele, deveria conversar com o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e o Conasems (Conselho de Secretarias Municipais de Saúde) “para atingir os municípios a respeito da prioridade da vacina”. “O custo-benefício da vacinação é fundamental, excelente. O que se gasta com vacinas é poupado depois com o tratamento de doenças”, finaliza.
Organizar mutirões e ampliar o horário de atendimento aos usuários do sistema público de saúde são duas táticas citadas como efetivas pelos especialistas.
“As pessoas trabalham o dia todo, saem cedo de casa, voltam tarde, e não conseguem acessar os postos de saúde. Por isso, precisamos expandir os horários, abrir aos sábados, aos domingos, ampliar o horário de atendimento uma vez na semana, fazer mutirões para que todos tenham acesso e, obviamente, informação, sobretudo a respeito da importância e da segurança das vacinas”, salienta Silva.
Uma medida importante lembrada por Gurgel é a chamada oportunidade de vacina, que consiste em aproveitar qualquer ida – de famílias e crianças – ao médico ou ao posto de saúde para colocar a caderneta de vacinação em dia.
“Essa estratégia deveria ser uma política pública, uma diretriz: toda pessoa que buscar pelo serviço de saúde, antes de fazer qualquer coisa, como consultas e exames, teria o calendário [vacinal] atualizado, caso ele esteja em atraso”. A medida, de acordo com os especialistas, tem o intuito de otimizar o tempo do cidadão e economizar o gasto de uma passagem extra com transporte público.
“A vacina não pode ser uma questão de crença porque ela é uma questão de ciência. Por isso, é preciso informar a população sobre a efetividade e a importância das vacinas, seja pelo rádio, pela TV, pela internet, nas universidades, nas escolas e até em templos religiosos. Ou seja, a informação deve estar em todos os locais onde haja [a audiência do] povo”, alerta Nanci Silva.
“A gente só ganha da desinformação informando”, acrescenta Cristina Albuquerque, que aponta ainda que, além de ensinar a respeito da relevância das vacinas, é urgente explicar como funciona o esquema vacinal completo.
“Não adianta a pessoa tomar uma dose e não voltar para a segunda, para a terceira ou para o reforço, por exemplo. Ela tem de saber que, para estar protegida, precisa percorrer todo o ciclo, retornando à unidade de saúde dentro do prazo indicado”, diz.
E como informar corretamente? “A comunicação tem de ser massiva, motivadora, educadora e chamar para uma ação. Já vi cards bonitinhos nas redes sociais, com ilustrações de personagens famosos, mas com os dizeres ‘xô, sarampo’. O que isso, efetivamente, significa para as famílias?”, conta Albuquerque.
Segundo ela, os textos das campanhas devem apresentar a doença, mostrar as possíveis sequelas que aquela enfermidade pode causar e convidar a população a se vacinar.
Assim como boa parte da população, muitos estudantes da área da saúde, médicos e enfermeiros não viram a poliomielite e o sarampo circularem, como ocorria nos anos de 1950 e 1960. Por isso, os especialistas consultados pelo Nexo dizem que essas lembranças devem ser reavivadas.
“Infelizmente, vários profissionais não recomendam as vacinas por falta de informação e de baixa percepção de riscos. Não acredito que seja uma questão intencional, ideológica, acho que é pura falta de informação mesmo. Por que vacinar uma criança contra a pólio se há 33 anos a gente não tem um caso no país?”, questiona a infectologista Nanci Silva.
Para Cristina Albuquerque, a medicina, cada vez mais, foca o tratamento e a cura, deixando a prevenção um pouco de lado. “Assim, tem de haver a sensibilização desses jovens profissionais. A Sociedade Brasileira de Imunizações e a Sociedade Brasileira de Pediatria já estão fazendo isso. Precisamos chamar os responsáveis à responsabilidade. Outro ponto importante é que as famílias confiam nos profissionais da saúde, então, eles têm um papel-chave na comunicação com essa comunidade”.
Artistas, influenciadores digitais, atletas, lideranças comunitárias. Todos esses atores da sociedade podem ajudar na ressignificação do Programa Nacional de Imunizações. “É extremamente representativo que pessoas com poder de mídia, como os jogadores de futebol, falem sobre a importância da vacinação”, diz Silva.
Cristina Albuquerque lembra que as lideranças religiosas também são importantes na batalha da conscientização. “A palavra de um padre ou a de um pastor tem muito poder. Basta qualificá-los com relação à mensagem. Não importa o porte da cidade, ela tem lideranças locais, e essas pessoas têm que vir junto em prol da vacina. Vivemos uma emergência não declarada de saúde pública. E é obrigação da sociedade, das famílias, dos profissionais de saúde, do governo, do setor privado ajudar no resgate da ampla vacinação”, lista.
Criado em 1986, o carismático personagem em formato de gota se tornou, desde então, garoto-propaganda de todas as campanhas de vacinação do Brasil e contribuiu para popularizar o Programa Nacional de Imunizações . Para Ricardo Queiroz Gurgel, resgatar – apresentando às novas gerações – a figura “simpática e querida” do mascote pode ajudar na necessária retomada do PNI.
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