Expresso

Como a cannabis pode ser usada na medicina veterinária

Lucas Zacari

20 de abril de 2023(atualizado 01/01/2024 às 19h44)

Derivados da maconha também podem ajudar em tratamentos de doenças e sintomas em animais. UFSC é primeira universidade do país com permissão para cultivar e pesquisar planta com esse fim

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Cão da raça labrador recebendo óleo de CBD. Um cachorro de pelo amarelado está com a boca aberta, recebendo gotas de um conta-gotas, com um líquido amarelo. Uma mulher segura o conta-gotas em uma mão, com o frasco na outra.

Cão recebendo óleo de CBD

Após obter autorização judicial , a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) iniciou, em março, o cultivo de 120 sementes de uma variedade de cannabis rica em canabidiol. Essa é a primeira cultura da planta liberada para pesquisa universitária em medicina veterinária no país.

A utilização de derivados da maconha para fins medicinais humanos avançou no Brasil, mas a prescrição para animais não é liberada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Estudos mostram que a substância pode ser usada para tratamento de convulsões em cães e gatos, por exemplo, mas os tutores dependem da judicialização do processo para a permissão de uso, tendo em vista que nenhum medicamento com a substância foi aprovado.

Neste texto, o Nexo apresenta o trabalho do laboratório catarinense, os potenciais usos daCannabis sativa para a medicina veterinária e como a liberação da substância para animais tramita no Brasil.

Pioneirismo no Brasil

A 1ª Vara da Justiça Federal de Florianópolis concedeu, em dezembro de 2022, uma autorização para o professor Erik Amazonas realizar todas as etapas de pesquisa daCannabis sativa para medicina veterinária. Essa medida permite ao pesquisador cultivar, preparar, produzir, fabricar, armazenar, e prescrever o uso da planta.

A autorização para o plantio da maconha medicinal é válida somente para o campus da UFSC na cidade de Curitibanos, onde o Grupo de Estudos em Produção Animal e Saúde está sediado.

A pesquisa com a primeira geração de plantas cultivadas para estudo veterinário no país pretende avaliar os impactos da medicação à base de derivados de cannabis em animais. Serão analisados o potencial cicatrizante e anti-inflamatório e os efeitos inseticida, repelente, mosquicida, anti-helmíntico (para combate de vermes) e desinfetante da planta.

“O cultivo pela universidade permitirá, além da pesquisa e uso clínico veterinário, a caracterização química de diferentes linhagens e seus produtos”, disse o professor à Agência de Comunicação da UFSC. Segundo Amazonas, a pesquisa pretende capacitar acadêmicos das áreas de medicina veterinária, agronomia e engenharia florestal “na vanguarda da ciência canabinoide”.

Em até seis meses, espera-se que entre 90% e 95% das sementes germinem. A etapa seguinte será a extração do canabidiol das folhas da planta, para preparação do óleo medicinal.

Usos da maconha na veterinária

A utilização daCannabis sativa na veterinária é semelhante ao tratamento medicinal humano . Com ação de relaxamento muscular, antioxidante e anti-inflamatória, os medicamentos podem tratar:

  • Dores provenientes de osteoartrite – problemas nas articulações, sobretudo em cães grandes
  • Doenças oncológicas , como câncer de mama e de pulmão
  • Alergias
  • Doenças cardiovasculares e respiratórias

Além dessas aplicações, o tratamento mais conhecido envolve a diminuição de convulsões, sejam elas epiléticas ou não. O canabidiol, ou CBD, tem a capacidade de controlar as descargas dos neurotransmissores e das atividades químicas e elétricas em excesso no cérebro, diminuindo tanto a frequência quanto a intensidade das crises.

Um exemplo é a cachorrinha Yara . Em 2019, Júlia Machado, uma aluna do curso de veterinária da UFSC, entrou em contato com Amazonas, pois sua cadela, com cerca de nove meses, começou a apresentar convulsões severas e contínuas . Ela pediu ajuda para o professor e, com a administração de óleo integral de cannabis, as crises cessaram.

Numa live no canal do YouTube Sechat, em abril de 2020, o professor também explicou por que se conhece tantos possíveis usos da planta para a medicina veterinária: “Todos os estudos pré-clínicos [de tratamento de doenças com cannabis] em humanos são produzidos em animais. Para você usar um medicamento em humanos, como teste, você precisa passar por várias etapas em animais e comprovar a eficácia e segurança nesses animais”.

Uma revisão literária feita por pesquisadores do Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos, em Gama, Brasília, mostrou que, entre 2010 e 2020, 1.650 trabalhos com as palavras-chave “canabidiol”, “pain” (dor) e “dog” (cachorro) foram publicados mundialmente na plataforma Google Scholar. Ao se aprofundar em cinco estudos, foi constatado que, em todos, houve diminuição de dores crônicas, apesar de pequenas alterações no sistema renal dos animais.

Uma das principais preocupações em relação ao uso de maconha medicinal em animais se dá pela toxicidade do THC, o tetrahidrocanabinol, substância psicotrópica e alucinógena da planta. Segundo a Associação Canadense de Medicina Veterinária Canabinóide , a dose mínima para efeitos de toxicidade por THC em cães é de 0,5mg/kg.

No entanto, a grande maioria dos medicamentos administrados com aCannabis sativa utilizam apenas do canabidiol, que não é tóxico.

A situação brasileira

Apesar da comprovação científica dos benefícios da maconha medicinal no tratamento de animais, ela ainda não é legalizada no Brasil. A resolução RDC Nº 327 da Anvisa, de dezembro de 2019 — que concedeu a fabricação, importação, comercialização e prescrição da cannabis para tratamentos – ressalta que a substância é permitida apenas “para fins medicinais de uso humano”.

Em 2021, o deputado federal Bacelar (PV-BA) apresentou um projeto de lei para que as autorizações concedidas ao uso de produtos derivados deCannabis sativa também se destinassem à veterinária. O texto afirma que somente seriam aceitos medicamentos que fossem autorizados junto aos órgãos reguladores responsáveis, como a Anvisa.

A demora e indecisão legislativa faz com que tutores e veterinários tenham que recorrer ao Judiciário para receber medicações para os animais, com grandes chances de ganhar a causa. Isso porque existe um limbo jurídico : ao mesmo tempo que a Anvisa e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento impedem a utilização da maconha medicinal, o estatuto da profissão permite que médicos veterinários receitem quaisquer tratamentos que julguem eficazes.

Assim, com a obtenção de um habeas corpus preventivo – semelhante ao salvo conduto recebido pelo professor da UFSC –, tanto o dono do quanto o veterinário têm autorização para obter esses medicamentos, sem o risco de ser enquadrado na prática de crime de tráfico, sobretudo pelo artigo 33 da Lei de Drogas .

Muitos donos de pets vão atrás de pacientes que têm autorização para cultivo , chamados de anjos, para comprarem os medicamentos. Em entrevista ao podcast “ Bichos na escuta ”, do Fantástico, o médico veterinário Fábio Mercante de San Juan explica que essa é uma prática perigosa, pois a plantação é permitida apenas para uso próprio. Ou seja, tanto quem vende quanto quem compra corre o risco de sofrer consequências penais.

“A gente está passando pela mesma situação que as mães humanas passaram com seus filhos. Porque as pessoas se veem sem saída”, ressalta San Juan.

O debate ao redor do mundo

A discussão sobre o uso veterinário da cannabis não é exclusividade brasileira . Nos Estados Unidos , a FDA , agência americana de regulação de alimentos e remédios, não aprovou nenhuma medicação veterinária com derivados da maconha.

No entanto, a AMDUCA (Lei de Esclarecimento do Uso de Drogas Medicinais em Animais), de 1994, permite que medicamentos para humanos sejam prescritos para animais, desde que se comprove que a falta de tratamento gere sofrimento ou morte ao animal. Com isso, nos 38 estados americanos que autorizaram o uso medicinal da maconha , a administração veterinária também pode ser feita.

No Canadá, não há medicamentos veterinários com cannabis autorizados. No entanto, partes da planta da maconha que não têm substâncias psicoativas – sementes não vivas, caules, fibras e raízes – podem fazer parte da formulação de Produtos de Saúde Veterinária, usados para saúde e bem-estar do animal.

Nos países da União Europeia também há certa dubiedade sobre o uso veterinário da maconha medicinal. Apesar da Federação Veterinária Europeia constatar que esse tipo de medicação não foi aprovada, alguns remédios são registrados como homeopáticos na legislação veterinária.

A organização sugere que se façam pesquisas sobre a eficiência da planta e que, enquanto isso não acontece, a prescrição de medicamentos com cannabis deve ser feita única e exclusivamente por veterinários.

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