Expresso

Por que a dipirona é liberada no Brasil e proibida nos EUA

Lucas Zacari

04 de março de 2024(atualizado 28/03/2024 às 11h56)

Inúmeros países baniram medicamento analgésico e antitérmico na década de 1970. Veja o que dizem os estudos relacionados ao tema

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Temas

Compartilhe

FOTO: FreepikMulher tomando remédio. Foto dando close nas mãos de uma mulher. Em uma mão, alguns comprimidos circulares brancos. Na outra, um copo d'água

Mulher tomando remédio

Em circulação no Brasil há mais de um século, a dipirona é a principal indicação para o tratamento contra dores moderadas e a diminuição da febre. A sexta edição do Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico, divulgado em agosto de 2023 pela SCMED (Secretaria-Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), mostrou que o princípio ativo foi o quarto mais vendido em 2022 no país.

93,5 milhões

é número aprozimado de doses de dipirona e dipirona monoidratada comercializadas no Brasil no 1º semestre de 2023, de acordo com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)

Apesar da ampla penetração no Brasil, o medicamento é proibido em mais de 30 países, como Japão, Austrália, Reino Unido e grande parte da União Europeia. Nos EUA, a comercialização do analgésico e antitérmico está proibida desde 1977

Neste texto, o Nexo explica o funcionamento da dipirona no corpo, resgata o histórico da proibição do medicamento no exterior e responde por que o Brasil mantém a circulação do remédio.

Como a dipirona age no corpo

A dipirona, também chamada de metamizol, é um analgésico e antitérmico criado em 1920 pela indústria farmacêutica alemã Hoechst AG. Em 1922, o medicamento já estava em circulação no Brasil, sob o nome comercial de Novalgina. 

Além de diminuir a febre, a dipirona atua no alívio de dores em geral, sendo indicada principalmente para casos de:

  • Dor de cabeça e enxaqueca
  • Cólica intestinal, renal ou menstrual
  • Dor muscular
  • Dores de pós-operatório
  • Dor de dente
  • Sintomas de gripe e resfriado

Dentro do corpo, o medicamento age em duas frentes. Primeiramente, inibe enzimas de resposta inflamatória e de percepção de dor, conhecidas como COX (ciclooxigenase). Também dessensibiliza nociceptores, terminações nervosas sensíveis à dor, ao reduzir a produção de lipídios chamados prostaglandinas.

Utilizada em doenças não graves e com evolução lenta ou inexistente, a dipirona está inserida na Lista de Medicamentos Isentos de Prescrição, da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Com isso, as farmácias podem vender o remédio sem a obrigatoriedade de apresentação da receita médica.

Apesar de apresentar baixo risco, o medicamento é contraindicado para determinados grupos populacionais devido a alguns efeitos colaterais. A dipirona não é recomendada para grávidas, lactantes, hipotensos (quem tem baixa pressão) e crianças abaixo de três anos ou cinco quilos. 

O histórico da proibição no exterior

Até a década de 1960, a comercialização da dipirona era praticamente mundial. Em 1964, um estudo publicado na revista científica Jama (The Journal of the American Medical Association) mostrou que um a cada 127 indivíduos expostos à molécula de aminopirina — de estrutura química semelhante a da dipirona — apresentaram agranulocitose

Essa condição imunoalérgica afeta a medula óssea e diminui a quantidade de granulócitos, um tipo de glóbulo branco responsável pela proteção contra infecções, e costuma durar cerca de uma semana. Consumo de medicamentos em excesso, desnutrição e doenças autoimunes podem gerar esse quadro.

Segundo um estudo publicado pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) em 2021, os autores da pesquisa original correlacionaram à dipirona os resultados apresentados com a aminopirina devido à semelhança química entre as duas, alegando que o princípio ativo (da dipirona) poderia desenvolver agranulocitose em uma alta taxa de usuários.

O estudo de 1964 serviu de base para que a FDA (Food and Drug Administration), a agência reguladora americana, proibisse o uso do medicamento nos EUA a partir de 1977. A possível queda de glóbulos brancos como efeito adverso secundário possivelmente fatal foi considerada a principal alegação para o impedimento da circulação. 

Para recuperar o espaço de mercado de seu medicamento, a farmacêutica Hoechst conduziu um estudo em oito países (Alemanha Ociental, Bulgária, Espanha, Hungria, Israel, Itália e Suécia), com dados de 22,2 milhões de pessoas, entre 1979 e 1986. O Estudo de Boston, como o trabalho ficou conhecido, mostrou que a taxa de incidência é de 1,1 casos por milhão de pessoas que utilizaram dipirona.

O exemplo da Suécia, contudo, expressa como as dúvidas sobre os efeitos em determinadas populações ainda existem. O país havia banido o uso da dipirona a partir de 1974, seguindo alguns dos países da Europa. Com o anúncio dos resultados da pesquisa alemã, os suecos permitiram a volta da circulação do remédio em 1995. No entanto, em quatro anos, foi registrado um caso de agranulocitose a cada 1.439 prescrições, bem mais altos que os valores durante a proibição.

Outros estudos foram desenvolvidos e seguiram a linha e os resultados dos pesquisadores alemães. Mais de cem países aprovam e permitem a comercialização de dipirona nas farmácias, como Alemanha, Rússia, Espanha, Índia e nações da América Latina.

Assine nossa newsletter diária

Gratuita, com os fatos mais importantes do dia para você

Os efeitos em diferentes populações

Além de variações metodológicas, um relatório de dezembro de 2018 da Agência Europeia de Medicamentos concluiu que diferenças genéticas entre as populações dos países podem ser as responsáveis por resultados discrepantes de agranulocitose. 

De acordo com os pesquisadores da UFJF, variações étnicas podem numa maior ou menor toxicidade da dipirona no organismo. Apesar de ainda não existirem estudos conclusivos, é provável que as populações dos países que proíbem esse remédio sejam compostas por indivíduos com metabolização lenta, algo que pode potencializar efeitos tóxicos do princípio ativo.

Tal relação foi abordada pela Associação de Pacientes Afetados por Medicamentos, da Inglaterra, ao analisar dados da Espanha, onde a dipirona é liberada. Dos 350 casos suspeitos de agranulocitose na Espanha, 170 eram de britânicos que moravam ou estavam visitando o país. 

Um dos fatores que podem dificultar a identificação dos médicos e pesquisadores sobre a incidência de agranulocitose por dipirona são os sintomas que a doença gera. A queda do número de glóbulos brancos deixa a pessoa mais suscetível ao desenvolvimento de infecções, podendo gerar sintomas semelhantes aos dos tratados pelo próprio medicamento, como dor de garganta e febre. 

Assim, algumas vezes é difícil de identificar se o quadro de imunossupressão já estava na pessoa ou se o uso do medicamento por esses sintomas gerou a redução dos granulócitos. 

Os testes no Brasil

A Anvisa realizou um evento em 2001 para esclarecer dúvidas a respeito da segurança do medicamento. O relatório final do Painel Internacional de Avaliação da Segurança da Dipirona, que contou com a participação de cientistas nacionais e estrangeiros, concluiu que a eficácia como antitérmico e analgésico é inquestionável e que os riscos para a população brasileira são iguais ou menores que de outros remédios disponíveis no mercado. 

Em nota ao Nexo, a Anvisa afirmou que “a dipirona, como qualquer outro medicamento, não é isenta de riscos relacionados ao seu uso, entretanto, seu perfil de segurança é bem estabelecido e o benefício do uso conforme as condições aprovadas em bula superam os riscos conhecidos relacionados ao uso”. Na bula do remédio está descrito que existe a possibilidade do desenvolvimento de agranulocitose, mas que esse é um quadro raro.

Na continuação da nota, a agência reguladora brasileira destacou o cenário brasileiro. “Embora uma das atividades realizadas pela agência seja o acompanhamento das discussões relacionadas à segurança dos medicamentos junto aos órgãos reguladores internacionais, nem todas as ações adotadas internacionalmente são aplicáveis para o mercado nacional, uma vez que cada país apresenta as suas particularidades”.

Em 2008, foi publicado o Latin Study (Estudo Latino, em tradução livre), uma pesquisa que analisou a recorrência de agranulocitose no Brasil, Argentina e México entre 2002 e 2005, totalizando 548 milhões de pessoas como amostra populacional. Ao todo, 52 casos da doença foram identificados, o equivalente a 0,38 casos por milhão a cada ano, o que é considerado uma taxa muito baixa. 

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas