Expresso

A onda de mentiras que mina ações de ajuda aos gaúchos 

Isadora Rupp

07 de maio de 2024(atualizado 08/05/2024 às 19h21)

Notícias falsas sobre a região atrapalham trabalhos de assistência à população atingida por enchentes. O ‘Nexo’ conversou com pesquisadores para entender efeitos e objetivos da desinformação

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FOTO: Amanda Perobelli/Reuters 07.05.2024Pessoas deixam área alagada da cidade de Eldorado do Sul (RS). Elas seguram pertences e caminham no meio da água e lama

Pessoas deixam área alagada da cidade de Eldorado do Sul (RS)

O drama dos gaúchos por causa das enchentes que se alastram pelo Rio Grande do Sul desde o dia 29 de abril tem sido agravado pela disseminação de notícias falsas sobre a crise sem precedentes na região. 

100

era o número de mortes confirmadas na terça-feira (7) em decorrência das chuvas no estado, segundo boletim da Defesa Civil estadual

A Polícia Civil do estado abriu oito investigações contra fake news na terça-feira (7), e o governo gaúcho criou uma força-tarefa para checagem e contestação das informações inverídicas. O governo federal acionou o Ministério da Justiça para identificar e investigar disseminadores de notícias falsas. 

Neste texto, o Nexo mostra quais são os tipos de fake news mais comuns que estão circulando sobre as enchentes e analisa com pesquisadores do tema o que se pretende com a desinformação. 

O padrão comum 

Agências de checagem como Lupa e Aos Fatos estão com equipes dedicadas a verificar e desmentir fake news sobre a tragédia climática no Rio Grande do Sul. Segundo as agências, os aplicativos de mensagem, como o Whatsapp, são os meios mais utilizados para espalhar mentiras. 

Entre as notícias falsas, há um padrão comum: desinformação sobre ações dos governos, seja federal, estadual ou municipal, como se as instituições estivessem atrapalhando os resgates e ações. 

Os boatos prejudicam a ação de autoridades, prefeituras, bombeiros e companhias de água e energia. Além do trabalho de campo para resolução ou contenção dos problemas, as instituições precisam continuamente elaborar posts e vídeos para desmentir as mentiras. 

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Uma dessas notícias falsas foi disseminada pelo coach e influencer Pablo Marçal, que tem mais de 8 milhões de seguidores apenas no Instagram. 

Em um vídeo, Marçal disse que a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul estava exigindo notas fiscais das doações. A informação falsa foi desmentida pela brigada militar do estado. O coach não teve o nome citado nem em notas nem em vídeos publicados nas redes sociais oficiais do governo do Rio Grande do Sul.

FOTO: Reprodução /Aos Fatos Print do vídeo de Pablo Marçal, em checagem da agência Aos Fatos

Print do vídeo de Pablo Marçal, em checagem da agência Aos Fatos

A mesma fake news foi propagada pelo senador Cleitinho (Republicanos-MG). Marçal, Cleitinho e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) estão na lista de influenciadores e políticos apontados pelo governo federal como disseminadores de fake news. O ministro da Justiça Ricardo Lewandowski enviou o ofício que recebeu do Palácio do Planalto à Polícia Federal para adoção das providências cabíveis

Outra fake veio do influenciador Nego Di, que soma 9,7 milhões de seguidores no Instagram. Em vídeo, ele disse que autoridades em Canoas, uma das cidades mais prejudicadas, estavam exigindo brevê de piloto de barco (documento que concede permissão para dirigir esse tipo de veículo), para voluntários que estão auxiliando nos resgates com barcos e jet ski. A informação também é falsa, e o governo estadual não está autuando esses veículos.  

O influenciador criticou o governador Eduardo Leite (PSDB) e chamou a gestão gaúcha de “lixo”. “Quem tá salvando o estado não é o governador, não é o Eduardo Leite, não é o Lula, são os gaúchos. Se vocês não vão facilitar ou ajudar, não dificulta”, disse Nego Di na publicação. 

A Polícia Rodoviária Federal foi outro alvo: posts e mensagens diziam que os policiais estavam bloqueando o trânsito de veículos com doações, o que foi desmentido. 

Postagem da PRF no Instagram desmente fake news sobre bloqueios de caminhões com doações ao RS

“Há, de fato, um conjunto de debates com ataques ao governo federal, estadual e às instituições. O que é preocupante, porque se dissemina a crença de que as instituições são corruptas, precárias e não preparadas. Isso vai minando a confiança da população”, disse ao Nexo a pesquisadora Thaiane Oliveira, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF (Universidade Federal Fluminense), e superintendente de comunicação da universidade. 

Grandes influenciadores acabam sendo poupados de responsabilização pelos danos que causam com as mentiras, afirmou ao Nexo a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). 

“Um influenciador divulga uma fake news. Depois, há todo um esforço em desmentir aquilo. Todo mundo vai na rede social dessa pessoa para ver, o que atrai a atenção. E aí o influenciador pode sempre falar que foi um erro, ou desatenção. O ponto é: as pessoas que disseminam desinformação não vão sofrer nenhuma punição por isso, e a imagem não fica necessariamente arranhada. Além disso, elas não têm a obrigação profissional de fazerem uma retratação, ao contrário de jornalistas profissionais”, disse Rocha. 

Mais fake news populares 

Desde o agravamento das chuvas e enchentes no dia 30 de abril, a equipe de comunicação da UFSCPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) começou a monitorar a disseminação de fake news e produzir conteúdos para auxiliar no combate à desinformação. 

Segundo a jornalista Janine Bargas, que é professora da UFSCPA, doutora em Comunicação e atua no comitê de crise da universidade — que, entre outras ações, monitora desinformação sobre a tragédia climática —, três notícias falsas são comuns desde o agravamento das enchentes: 

  • Desligamento em massa da energia elétrica em Porto Alegre pela Equatorial, concessionária local de energia, logo no início da crise.  Não houve interrupção imediata do fornecimento logo no início das chuvas. Segundo a distribuidora, 206 mil clientes estão sem energia elétrica e 189 mil tiveram a luz desligada por segurança. O prefeito Sebastião Melo (MDB), pediu à população que economize água e energia por risco de “colapso”. 
  • Chaves PIX falsas em nome do governo do estado do Rio Grande do Sul. De acordo com Bargas, muitos cards e áudios falsos circularam pelo whatsapp pedindo doações logo no início das enchentes. O governador Eduardo Leite fez na segunda-feira (6) um alerta sobre os golpes
  • Rompimento de diques nas cidades de Porto Alegre e São Leopoldo. Não houve rompimento: a água superou o nível dos diques e as comportas não foram vedadas para impedir que a água invadisse a avenida Mauá, na capital gaúcha. 

De acordo com Bargas, uma notícia falsa que preocupa em particular a UFSCPA é sobre antibióticos que serviriam como uma “prevenção” à doenças como a leptospirose, pelo contato com água contaminada. Se usados sem avaliação médica criteriosa, o uso indiscriminado pode afetar o funcionamento do fígado e auxiliar na resistência ao medicamento e no surgimento de superbactérias. Há grupos que estão vendendo os coquetéis pela internet. 

Posts e cards que circulam no Whatsapp e redes sociais prescrevem antibióticos, inclusive com dosagens para gestantes e crianças, e orientam que as pessoas façam uso caso tenham ficado por mais de 15 minutos submersas na enchente. Segundo a professora, a universidade conseguiu identificar que os grupos que estão disseminando a informação falsa são os mesmos que recomendavam cloroquina como prevenção a covid-19 durante a pandemia. 

FOTO: Amanda Perobelli/Reuters - 5.mai.2024

Resgate de pessoas no Rio Grande do Sul

“São dosagens altíssimas do que a gente chama tecnicamente de quimioprofilaxia à leptospirose. São medicamentos destinados para pessoas que têm muitas horas de exposição à água contaminada, como socorristas, ou que têm alguma ferida e entrou contato com a água. Mas não é para uso em massa, muito menos sem prescrição médica”, disse Bargas. 

A Sociedade Brasileira de Infectologia e Sociedade Gaúcha de Infectologia divulgaram uma nota em conjunto com explicações sobre as situações em que a profilaxia é indicada e que é fundamental uma análise médica criteriosa. O texto informa que os medicamentos não podem ser utilizados por gestantes. 

No sábado (6), uma fake news envolveu o show da Madonna na praia de Copacabana. Posts e comentários diziam que a apresentação da cantora foi bancada com dinheiro público que seria destinado ao Rio Grande do Sul. 

FOTO: Pilar Olivares/Reuters - 4.mai.2024

Madonna em show no Rio de Janeiro

Do valor de R$ 60 milhões do show, houve apoio de R$ 10 milhões do governo do Rio e R$ 10 milhões da prefeitura do Rio. O banco Itaú, para quem Madonna estrela uma campanha publicitária referente aos cem anos da instituição, bancou a maior parte dos custos. 

Marcas como Heineken também patrocinaram. O governo federal não investiu dinheiro no show. O ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, publicou vídeo desmentindo as informações inverídicas. 

Segundo Thaiane Oliveira, da UFF, houve uma convergência dos dois grandes eventos: as enchentes no Rio Grande do Sul e o show, assuntos que monopolizaram as redes e o noticiário, o que torna-se um ecossistema favorável para a propagação de fake news, por causa do alcance e engajamento gerado. 

A lógica desinformativa 

Para a pesquisadora Janine Bargas, o principal objetivo das fake news é a desestabilização da ordem coletiva, algo particularmente preocupante em situações caóticas como a da tragédia climática gaúcha. 

“Notadamente, são informações que contrariam os órgãos e autoridades no assunto. O que a gente percebe é que o intuito da desinformação é a desestabilização dos órgãos de governo e autoridades científicas para desordem social para possível politização futura dessa situação de caos”, afirmou Bargas. 

Na análise do professor Camilo Aggio, docente do Departamento de Comunicação Social da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador do INCT.DD (Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia em Democracia Digital), e do Margem (Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça), o uso da desinformação em eventos como o do Rio Grande do Sul não diferem do que se convencionou a chamar de máquina de produção de desinformação, o que influenciou, por exemplo, nas eleições de 2018 e 2022 e na pandemia de covid-19. 

“De início, a aplicação visa produzir confusão na esfera pública, desmobilização, engano, e por aí vai. Depois, o ataque político-ideológico a inimigos declarados, que pode ser o próprio sistema político, as instituições e as universidades. O cálculo é converter um evento na possibilidade de lucrar politicamente no longo ou médio prazo, inventando novos inimigos ou recauchutando ataques a inimigos antigos”, afirmou Aggio ao Nexo

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