As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul e mobilizaram o país em 2024 destruíram vidas, lares, identidades e histórias. Em um primeiro levantamento, o governo do estado identificou danos em pelo menos 56 bibliotecas, 47 museus, 51 casas de cultura e centros culturais, 31 CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), 25 clubes comunitários e sociedades recreativas culturais, 11 teatros e 8 salas de música.
Mas os efeitos das mudanças climáticas, como bem sabemos, estão por toda a parte. O ano passado foi, de acordo com o programa Copernicus, o mais quente já registrado. Ainda no Brasil, enfrentamos a maior seca já vista segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais). A ameaça do fogo também vem crescendo: o país encerrou 2024 com mais de 278 mil focos de incêndio – um aumento de 46,5% em relação ao ano anterior. E um levantamento da CNM (Confederação Nacional de Municípios) apontou que eventos extremos já atingiram 93% dos municípios. Entre 2021 e 2022, cidades históricas como Ouro Preto (MG), Paraty (RJ), Petrópolis (RJ) e Recife (PE) foram severamente afetadas por índices pluviométricos muito acima do esperado.
Muito além do simbólico, a relação entre cultura e clima se materializa nas práticas, discursos e escolhas que moldam as sociedades e seus territórios
O setor cultural é particularmente vulnerável aos impactos climáticos – que, ao interromperem atividades artísticas e criativas, promovem a insegurança econômica de quem vive de cultura e cerceiam o pleno exercício dos direitos culturais pela população como um todo.
Ao mesmo tempo, em meio ao caos, o próprio Rio Grande do Sul viu a cultura emergir como símbolo de resiliência. Museus e bibliotecas que não foram atingidos pela tragédia abriram suas portas para acolher famílias desalojadas – um gesto que, no contraste entre a ameaça da destruição e a esperança de reconstrução, reforça o papel essencial da cultura. Ela tem, sim, a função de preservar memórias, mas é também, e sobretudo, nossa maior fonte de inspiração para reimaginar e reconstruir o que vem pela frente.
Muito além do simbólico, a relação entre cultura e clima se materializa nas práticas, discursos e escolhas que moldam as sociedades e seus territórios. Se o clima influencia os modos de vida, as expressões artísticas e os conhecimentos tradicionais, a cultura influencia diretamente a maneira pela qual as comunidades entendem e respondem às mudanças climáticas. Não se trata somente de preservar patrimônios materiais e imateriais, muito menos de uma questão restrita à inclusão, mas de valorizar povos e comunidades tradicionais e iniciativas que já oferecem respostas inovadoras para enfrentar a crise — e adaptar seus sistemas de conhecimentos à nova realidade climática a qual vivemos.
Um exemplo marcante – e uma conquista histórica – é o trabalho dos primeiros pesquisadores indígenas brasileiros a publicar, em dezembro de 2024, um artigo na Science, uma das revistas científicas mais prestigiadas do mundo. Cinco integrantes dos povos Tuyuka, Tukano, Bará, Baniwa e Sateré-Mawé foram coautores de um estudo vinculado ao projeto Brazil LAB, da Universidade de Princeton, que reúne e analisa saberes ancestrais do Alto Rio Negro, no Amazonas. A integração dos saberes indígenas em políticas e estratégias de conservação pode gerar novas perguntas e metodologias científicas, contribuindo para soluções mais eficazes e justas para os desafios ambientais.
No mesmo caminho, a iniciativa Espalha, coletânea vinculada ao recém-lançado projeto Cultura e Clima, mapeia experiências que vêm se mostrando indispensáveis para viabilizar essa integração. Uma delas, no Rio de Janeiro, é o Observatório dos Territórios Sustentáveis da Bocaina, fruto de uma parceria entre a Fiocruz e o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba. O espaço une saberes científicos e tradicionais para desenvolver estratégias de sustentabilidade, saúde e direitos nas comunidades da região.
Outro é o Tecnobarca, residência artística e festival itinerante na Amazônia que transforma um barco em galeria flutuante e espaço de troca cultural. A iniciativa conecta artistas, pesquisadores e moradores ribeirinhos em ações voltadas ao fortalecimento das identidades locais e à preservação ambiental, integrando arte, educação e meio ambiente.
Políticas climáticas eficazes e justas devem, portanto, incorporar essas vozes e experiências. Mais do que um reflexo de histórias, valores e territórios, a cultura é um fator decisivo e ativo de transformação.
A conclusão é uma só: precisamos fortalecer a integração entre cultura e clima. Conhecer e valorizar essas práticas é o primeiro passo. Em seguida, fomentá-las por meio de mecanismos de financiamento acessíveis e inclusivos é fundamental para que cresçam e beneficiem mais comunidades. E, sempre, é necessário incentivar que novos fazedores de cultura se vejam como parte de uma solução maior, contribuindo diretamente para a construção de uma agenda climática que respeite as diversidades culturais e ambientais.
Perceber a cultura como um vetor de mudança é um convite à ação coletiva. É nela, afinal, que encontramos tanto a preservação da memória como o conhecimento para compreender o presente e a inspiração para reinventar o futuro. Hoje, diante da crise climática, a cultura é mais do que um espelho de quem somos – é uma plataforma para o que queremos e podemos ser.
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Eduardo Carvalho é diretor da Outra Onda Conteúdo e responsável pela publicação do relatório “Cultura e Clima”
Mariana Resegue é diretora executiva do C de Cultura e responsável pela publicação do recém-lançado relatório ‘Cultura e Clima’