Coluna

Luciana Brito

Não devemos ter vergonha de nada

06 de julho de 2020

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O constrangimento e a desconfiança funcionam como instrumentos de controle das aspirações de pessoas negras

Durante as minhas aulas, costumo sempre dizer a minhas alunas e alunos que histórias de pessoas comuns podem conter verdadeiras evidências de determinado momento histórico. Utilizarei dessa mesma metodologia citando um episódio familiar para discutir como constrangimento, vergonha e desconfiança são instrumentos de controle das aspirações das pessoas negras, sejam essas aspirações pessoais ou políticas.

Desde criança, eu escutava aqui e ali que meu pai já havia sido preso. Na primeira vez que ouvi algo sobre a suposta prisão do meu pai, eu era tão criança, que ignorei o assunto. Depois, quando ouvi novamente fiquei pensando se meu pai havia roubado ou feito mal a alguém, e senti, sozinha, uma vergonha profunda.

Quando me tornei uma jovem adulta, já na faculdade de história, a minha avó, mãe do meu pai, finalmente me chamou um dia para quase que em segredo me falar desse episódio. Vovó, muito constrangida, não me falou o motivo, mas me disse que quando meu pai foi preso aquela havia sido a maior vergonha da sua vida e do meu avô. Foi assim que, vagamente, vovó me disse que meu pai foi preso porque se meteu com política. Somente pelo prestígio do meu avô, que era funcionário da Rede Ferroviária Federal na cidade do interior onde viviam, que o delegado soltou meu pai, que naquela época era um jovem estudante do que hoje chamamos de ensino médio.

Em prantos, a minha avó paterna me disse que, a despeito da vergonha, meu avô foi à delegacia e garantiu que meu pai nunca mais causaria aquele tipo de problema. Daquele dia em diante a relação dos dois não seria mais a mesma. Meu pai veio para casa acompanhado do meu avô de cabeça baixa, os dois em silêncio. Entrando na casa, vovô disse a ela: “aí o seu filho. Da próxima vez ele fica lá.”

Eu sei que vovó só me contou essa história porque eu era estudante de história. Ela imaginava que eu entenderia mas não me explicou direito o motivo desse segredo familiar. Foi somente um ano antes de morrer que meu pai, internado no hospital, finalmente retomou o assunto comigo e de repente me disse: “você sabe que eu já fui preso, não sabe?” E finalmente me deu sua versão do que aconteceu. Contou-me ele que na década de 60, portanto durante a ditadura, ele era estudante de ensino médio e presidente do grêmio estudantil da sua escola. Como liderança estudantil, decidiu escrever uma carta para um político de esquerda convidando o mesmo para dar uma palestra falando da conjuntura política do Brasil ditatorial. A tal carta foi interceptada pela polícia da sua cidade, que entrou na sua sala de aula com a carta na mão pedindo que ele se identificasse. Foi assim que meu pai foi levado para a delegacia para prestar “esclarecimentos”. Não adiantou meu pai tentar inventar uma outra história dizendo que achava que o político era professor de matemática. Ficou preso algumas horas e só saiu quando meu avô interveio.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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