Participação e democracia: o Brasil precisa de conselhos

Ensaio

Participação e democracia: o Brasil precisa de conselhos
Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

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Ana Claudia Teixeira, Carla de Paiva Bezerra e Marcelo Kunrath Silva


25 de maio de 2019

Governo Bolsonaro investe contra instâncias de participação e controle social das políticas públicas, uma das mais importantes inovações democráticas produzida pela sociedade brasileira

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Vivemos uma situação inusitada. A democracia brasileira — construída a duras penas e ainda muito distante de garantir direitos plenos a toda a população — tem sofrido ataques por parte do atual governo federal.

De um lado, toda forma de participação e mobilização política que lhe seja desfavorável é desqualificada. O ataque mais recente foi a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que os manifestantes do último dia 15 de maio eram “idiotas úteis” , desrespeitando estudantes e professores em todo o país, que de forma pacífica protestavam  contra os cortes na educação.

Desde que se iniciou a articulação política que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, vivemos longos e intensos anos de conflitos sociais e políticos que resultaram na disseminação de críticas frequentes à organização coletiva, à militância e ao ativismo. A cada semana vemos uma expressão de como o atual governo pretende enfrentar a crise política na qual o país está imerso: pela restrição da democracia. Tal intencionalidade se manifestou claramente quando  Bolsonaro declarou que iria “ botar ponto final em todos ativismos do Brasil ”.

De outro lado, está em curso um desmonte das políticas públicas, seja pelo corte e contingenciamento de verbas, como no caso da educação, seja pela extinção de órgãos responsáveis por sua execução. O governo Bolsonaro investe contra uma das mais importantes inovações democráticas produzida pela sociedade brasileira: os conselhos de políticas públicas.

Com a publicação do Decreto nº 9.759 , de 11 de abril de 2019, colegiados construídos para possibilitar a participação e o controle social das políticas públicas pela sociedade civil são ameaçados de extinção. Por seus efeitos de extinção generalizada e sem parâmetros, a medida ficou conhecida como “revogaço”.

Somente com a ampliação da participação e do controle social será possível o efetivo enfrentamento dos diversos problemas estruturais da sociedade brasileira — desigualdades, corrupção, violência, privilégios — que nos trouxeram à crise atual.

Como em várias outras iniciativas do atual governo, a proposta de eliminação da participação e do controle social expressa um profundo desconhecimento da complexidade das sociedades contemporâneas e, mais especificamente, da gestão pública nesse contexto. O decreto também se dirige ao funcionamento da administração pública, pois prevê a extinção de comitês, grupos de trabalho, salas, câmaras técnicas e outras estruturas que estão presentes em todos os órgãos da administração pública federal. Essas estruturas fazem parte do cotidiano da execução de políticas públicas e eliminá-las, sem critérios, pode causar prejuízo ao funcionamento do Estado e aos serviços públicos.

Existem aproximadamente 90 conselhos nacionais com participação da sociedade civil instituídos, sendo que 53 podem ser extintos. Dentre essa enorme lista , estão temas tão diversos como o Conselho do Idoso, o LGBT, de Erradicação do Trabalho Infantil e da Biodiversidade. O governo estipulou que os ministérios devem justificar a permanência de seus colegiados à Casa Civil e, caso não seja aceita a justificativa, eles estarão formalmente extintos em 28 de junho.

Mas, afinal, como surgiram e o que fazem os conselhos?

O direito de participação dos cidadãos e da sociedade civil foi consagrado ao longo da Constituição de 1988, que não à toa, tornou-se conhecida como a constituição cidadã. Ao longo das três últimas décadas, ocorreu um processo gradual de expansão de conselhos de políticas públicas, conferências, orçamentos , planos diretores e planos plurianuais participativos entre outros mecanismos de participação e controle social. 

Essa expansão ocorre em conjunto com a ampliação e universalização de políticas sociais fundamentais para a redução da desigualdade, como saúde, educação e assistência social. Hoje, há conselhos dessas políticas em praticamente todos os mais de 5.000 municípios brasileiros. Eles são responsáveis por fiscalizar a aplicação do dinheiro e verificar se a política está sendo implementada. A desestruturação de conselhos nacionais pode impactar a existência dos conselhos estaduais e municipais, afetando a execução das políticas públicas e a participação dos cidadãos no nível local.

Praticamente todas as forças políticas do país passaram a defender o ideário da participação social, a começar pelo PMDB, que na Assembleia Constituinte defendeu e relatou as emendas populares, propostas pela sociedade civil. Os dois partidos que protagonizaram as disputas pela Presidência da República nos anos 1990 e 2000, PT e PSDB, também tinham o tema da participação social como um elemento central de seus programas políticos. É a partir desse apoio generalizado que se dá o processo de implantação de mecanismos de participação e controle social em praticamente todas as áreas de políticas públicas e em todos os níveis de governo.

Em função da inovação e da difusão de suas experiências participativas, o Brasil conquistou reconhecimento e premiações internacionais ao longo dos últimos 30 anos, tornando-se um país exportador de modelos de participação e controle social. O reconhecimento da importância de espaços de participação passou a marcar o discurso e a atuação de organismos internacionais como a ONU . Tais organismos passaram a defender , particularmente a partir dos anos 1990, a participação social como um mecanismo fundamental de controle democrático, com efeitos de combate à corrupção e de melhorias do desenvolvimento socioeconômico.

Essas experiências possibilitaram a produção de diversos efeitos positivos em termos sociais e governamentais: a abertura da gestão pública para novos interesses, demandas e conhecimentos presentes na sociedade; a mobilização de recursos da sociedade para a identificação e o enfrentamento de problemas sociais; a fiscalização das ações dos gestores públicos; o controle social dos gastos públicos; a produção de políticas mais adequadas às especificidades dos contextos de implementação e das populações beneficiárias; o maior comprometimento da sociedade com políticas públicas que têm o envolvimento da população em sua formulação e/ou implementação; a ampliação do conhecimento sobre a gestão pública por parte da população envolvida nas experiências participativas; entre outros.

A ausência de possibilidades de participação institucional não fará com que os interesses divergentes e os conflitos a eles relacionados desapareçam da sociedade. Essa é apenas uma ilusão autoritária. Somente com a ampliação da participação e do controle social será possível o efetivo enfrentamento dos diversos problemas estruturais da sociedade brasileira — desigualdades, corrupção, violência, privilégios — que nos trouxeram à crise atual. O autoritarismo defendido e praticado pelo atual governo só aprofundará esses problemas, como temos observado nos últimos meses.

A reação ao Decreto 9.759

Felizmente, há diversas iniciativas de questionamento político e jurídico do Decreto 9.759/2019. Há pelo menos cinco projetos de decreto legislativo, de partidos diversos, em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que têm por objetivo sustar os efeitos do “revogaço”. Ainda, há duas ações judiciais em curso: uma Ação Popular, de autoria do PSOL e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo PT. Esta última obteve liminar concedida para ser julgada em regime de urgência, o que deve ocorrer antes da efetiva extinção dos colegiados, prevista para 28 de junho. Por fim, a sociedade civil tem se movimentado pressionando parlamentares, solicitando audiências públicas e promovendo campanhas sobre o tema. A campanha “ O Brasil precisa de Conselho ” faz parte desse esforço e é promovida por diversos pesquisadores e acadêmicos.

Em breve, o Supremo Tribunal Federal irá julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta contra o Decreto 9.759 de Bolsonaro. A corte terá a oportunidade de reafirmar que a participação social é um direito protegido constitucionalmente, e que instituições participativas como conselhos são parte integrante e fundamental da democracia brasileira. Já há inúmeras cartas, abaixo-assinados, manifestações nacionais e internacionais demandando a manutenção dos conselhos. A resposta à crise política brasileira é mais democracia, é mais participação e controle social. Afinal, o Brasil precisa de conselhos!

Ana Claudia Teixeiraé cocoordenadora do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e doutora em ciências sociais pela mesma instituição.

Carla Bezerraé advogada, doutoranda em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do CEM (Centro de Estudos da Metrópole).

Marcelo Kunrath Silvaé professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e doutor em sociologia pela mesma instituição.

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