A recente prisão dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes vem reforçar o que movimentos sociais denunciam há tempos: a profunda e permanente crise na segurança pública no Brasil não é fortuita, mas calculada. É um projeto de poder que parasita os anseios da sociedade por paz e segurança.
A centralização e militarização da segurança pública são apostas na violência e no medo como ferramentas. Operações policiais letais, como a Operação Verão em São Paulo, são exemplos desastrosos dessa abordagem.
Dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública evidenciam a falência desse modelo: mais de 47 mil homicídios em 2022, mais de 6.500 mortes causadas por policiais.
Em contraposição à falida ideologia da militarização, da guerra às drogas e do punitivismo, as lutas populares resistem e dobram sua aposta.
Essa crise não se distribui por igual. A população negra é alvo desproporcional da violência urbana, da violência policial e do encarceramento em massa. O sistema de Justiça se omite na responsabilização dos autores de crimes contra negros, mulheres e a comunidade LGBTQIA+. A violência urbana e institucional explodiu fora das capitais e grandes cidades, especialmente na Amazônia, refletindo a aposta cega no encarceramento e a incapacidade pública de frear as facções criminosas.
As consequências ultrapassam as estatísticas e corroem o tecido democrático. Elas marcam a vida de indivíduos, famílias e comunidades inteiras. A juventude negra, principal vítima, é privada de oportunidades e criminalizada.
Em contraposição à falida ideologia da militarização, da guerra às drogas e do punitivismo, as lutas populares resistem e dobram sua aposta.
Iniciativas como projetos de prevenção da violência, coletivos de advocacia popular, tecnologias populares de proteção, grupos de mães e familiares combatendo a violência, produção cidadã de dados, e a incidência em ações como a ADPFs 635 (das Favelas) e ADPF 973 (das Vidas Negras) ilustram apenas alguns exemplos da riqueza e diversidade de estratégias desenvolvidas por organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
Essas iniciativas ganharam, nos últimos anos, um valioso reforço. Os Fóruns Populares nasceram no Nordeste e hoje se articulam em todos os estados da região, além de São Paulo e Rio de Janeiro.
Esses fóruns mostram, a partir de uma perspectiva participativa e popular, que outra segurança é possível. Desde 2017, fazem o que o Estado se recusa: escutam de verdade o que a população tem a dizer sobre polícia, drogas, crime, mas, sobretudo, sobre comunidades vivas e seguras. Fazem isso a partir das Conferências Populares, que reúnem propostas elaboradas pela base, que são levadas às instituições responsáveis pela segurança pública. Até quando as propostas, as Conferências e os Fóruns Populares poderão ser ignorados? Não por muito tempo, certamente.
Como chegamos à formulação do SUS, esse grande sistema de democratização da saúde? Pela participação popular. Não é absurdo pensar que essa é também uma excelente aposta para a construção de uma segurança pública democrática e cidadã.
O Fundo Brasil de Direitos Humanos lançou o edital Incidência Popular em Segurança Pública para fortalecer iniciativas que, assim como os Fóruns Populares, buscam inovar e transformar a segurança pública e superar o racismo estrutural. São passos essenciais para a construção de um Brasil justo e seguro. As lutas populares estão aí para mostrar que é possível.
Pedro Lagatta é mestre em psicologia e assessor de projetos na linha de Justiça Criminal no Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Edna Jatobá é coordenadora-executiva do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares e integrante do Fórum Popular de Segurança Pública do Nordeste.
Allyne Andrade é advogada, especialista em Teoria Crítica Racial e superintendente-adjunta do Fundo Brasil de Direitos Humanos.