A Justiça brasileira é sabidamente morosa. Há hoje um acúmulo de 78 milhões de processos judiciais no país, de acordo com o estudo “O futuro da Inteligência Artificial no sistema judiciário brasileiro: mapeamento, integração e governança da IA”, realizado por um grupo internacional de pesquisadores da escola de administração pública internacional da Universidade de Columbia em parceria com o ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio) e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O sistema judiciário brasileiro opera com grandes desafios da administração do fluxo de casos e falta de recursos para suprir a demanda.
Para os pesquisadores, apenas soluções mais drásticas, como uma revolução tecnológica, podem aumentar a eficiência da Justiça no Brasil. O CNJ passou a permitir que os 92 tribunais brasileiros desenvolvessem seus próprios modelos de inteligência artificial. O juiz federal do Tribunal Regional Federal da Primeira Região Rafael Leite Paulo foi convocado para auxiliar o CNJ no Departamento de Tecnologia da Informação para coordenar esse universo de algoritmos no Judiciário.
Leite é um juiz que sabe montar e desmontar computadores, instalar e operar redes de sistemas operacionais. A intimidade com a tecnologia veio por influência do pai, técnico em informática. Desde o início de sua carreira na magistratura ele se valeu desses conhecimentos para auxiliar na execução de suas tarefas no dia a dia. Mas, ao chegar na 5ª Vara do Amazonas, em 2015, o volume de processos, que chegava à casa dos 50 mil, o levou a pesquisar e a fazer cursos na internet para que pudesse desenvolver suas próprias soluções tecnológicas.
Ele se valeu da utilização de aplicativos e scripts de baixo custo e os transformou em ferramentas de automação de tarefas repetitivas que se traduziram em um ganho de produtividade. De acordo com Leite, uma das grandes dificuldades no uso dos sistemas de informática pelo Poder Judiciário é a inexistência de equipes dedicadas ao desenvolvimento de software, com rotinas efetivas de feedback, o que inviabiliza uma cultura de constante atualização. O magistrado se dedica a contornar essa dificuldade atuando na implantação de novas tecnologias que promovam uma maior eficiência do sistema jurídico, economizando trabalho manual, horas-extras e trabalho repetitivo e pouco produtivo.
O juiz Rafael Leite Paulo é o décimo entrevistadoda série “Gestão Pública”, uma parceria do Nexo com a república.org . O projeto traz, ao longo dos meses, entrevistas em texto na seção “Profissões” — são conversas com profissionais que atuam na administração pública e ajudam a transformar a vida dos brasileiros.
Gestão Pública
Quem: Rafael Leite Paulo
O que: Juiz federal e auxiliar
Onde: No TRF-1 e no CNJ, respectivamente
No serviço público: Coordena a equipe que criou a plataforma de inteligência artificial empregada pelo Judiciário brasileiro
Você é um juiz federal versado em Python e criou suas próprias ferramentas tecnológicas na jurisdição. De onde veio essa fluência em linguagem de programação?
RAFAEL LEITE PAULO Por influência de meu pai, que sempre exerceu funções ligadas à área de tecnologia da informação, tive contato com computadores ainda na infância. Pude conhecê-los por dentro e por fora, sem medo de cometer erros. Desde muito cedo, montei e desmontei computadores, quebrei e consertei, instalei e desinstalei sistemas operacionais e programas, montei redes de computador e acessei a internet assim que o acesso ao público se tornou possível.
Por esse convívio e afinidade, já tinha intimidade com a lógica empregada nos sistemas de computador e fiz algumas experiências modestas desde o início da carreira na magistratura. A tecnologia da informação, assim, sempre me acompanhou e se reverteu na criação de soluções guiadas pelo seu uso nas tarefas do dia a dia. Mas, ao chegar na 5ª Vara do Amazonas em 2015, o volume de processos deixou claro, desde os primeiros dias da jurisdição, que o uso de soluções exclusivamente jurídicas não seria capaz de assegurar o processamento eficiente do volume de feitos, que chegava à casa dos 50 mil processos.
Com isso várias das etapas do trabalho da Vara passaram a ser auxiliadas por soluções desenvolvidas localmente por mim, já que não havia disponibilidade de nenhum profissional com capacidade para o seu desenvolvimento. A busca pela forma de realizar e quais soluções empregar decorreram de pesquisas e estudos na internet, em que me vali da grande quantidade de conhecimento disponível de forma aberta e comunitária, tanto em cursos e vídeos sobre os mais diversos temas.
O sistema judiciário brasileiro é considerado por muitos como um sistema moroso. Como a inteligência artificial pode contribuir para tornar o sistema jurisdicional mais eficaz?
RAFAEL LEITE PAULO Há uma infinidade de fatores que interagem para estabelecer um senso de morosidade da Justiça brasileira, desde aspectos numéricos, sociológicos e mesmo questões geográficas, passando pelo perfil jurisdicional de magistrados e instâncias recursais, além de aspectos técnicos do direito e tecnológicos das soluções usadas em cada tribunal. Tudo isso influenciado pelo conteúdo da lei e da jurisprudência.
A inteligência artificial tem o potencial de auxiliar não somente nos aspectos tecnológicos, mas contribuir, ao longo de sua evolução, com o aprimoramento e contemporização desses diversos fatores. Possibilitando, por exemplo, que se identifiquem processos similares de forma mais ampla e célere, com o julgamento conjunto de ações similares que antes teriam o potencial de decisões díspares, com a identificação de tendências regionais e aspectos culturais relevantes para a rápida solução de processos e a adoção de medidas voltadas a diminuir ou evitar a litigiosidade. Tudo isso pode ser implementado a partir da identificação de padrões escondidos na massa de dados. Todos esses aspectos podem, de maneira extremamente eficiente, ser realizados por algoritmos bem desenhados.
A inteligência artificial se mostra como uma ferramenta fundamental para possibilitar as próximas levas de avanços voltados a aprimorar o funcionamento do sistema de Justiça, contornando limitações dos modelos tradicionais de prestação jurisdicional, ampliando o acesso à Justiça e a qualidade dos provimentos judiciais, indicando o prognóstico de demandas judiciais e de decisões, com a finalidade de diminuir a propositura de ações temerárias e incentivar decisões jurisdicionais que apliquem de maneira mais uniforme e coesa as decisões dos tribunais de segunda instância e superiores.
Há uma infinidade de possibilidades para o emprego da inteligência artificial. As soluções concretas e os modelos que se estabelecerão como padrão ainda estão sendo estudados e construídos. A certeza é que, como todos os avanços tecnológicos anteriores, a sua rápida implementação e ampla adoção pelo Poder Judiciário serão essenciais para uma boa prestação jurisdicional pautada pela celeridade e efetividade.
Quais os impactos e transformações das ferramentas de IA no Judiciário?
RAFAEL LEITE PAULO Os impactos e transformações das ferramentas de IA são parte do capítulo que está sendo escrito. O potencial é enorme. Quanto mais agentes públicos comprometidos com esses objetivos, buscando viabilizar o seus avanços e aprimoramento, maiores são as chances de que vejamos nos próximos anos uma melhora significativa dos serviços públicos como um todo, não só do Poder Judiciário.
Por que você escolheu o serviço público?
RAFAEL LEITE PAULO Ao escolher o caminho a trilhar na minha vida profissional, busquei uma área de atuação na qual pudesse facilmente enxergar o potencial de beneficiar o maior número de pessoas por meio do meu trabalho. A carreira escolhida para alcançar essa finalidade foi a da magistratura, razão pela qual ingressei no curso de direito. A minha formação em uma universidade pública, o contato com professores servidores e os estágios em órgãos públicos que realizei consolidaram a visão de que o serviço público e especificamente a atuação no Poder Judiciário era efetivamente a via para alcançar esse objetivo.
A afinidade pessoal com a competência constitucional e a atuação em temas de alta relevância, com grande repercussão regional e nacional, guiaram o meu interesse e escolha pela Justiça Federal, onde sempre exerci minhas funções.
Você atualmente coordena no CNJ a equipe que criou o sistema Sinapses. Poderia explicar o que é?
RAFAEL LEITE PAULO O sistema Sinapses é uma plataforma de inteligência artificial, abrangendo o desenvolvimento e disponibilização em larga escala, seguindo um modelo de “Fábrica de Modelos de Inteligência Artificial”, na qual se pode implementar predição, classificação, sugestão, identificação. O sistema tem o potencial de aplicação nas mais diversas atividades do Poder Judiciário com o uso do processamento de linguagem natural, e a construção de redes neurais artificiais voltadas para a automação, identificação de entidades, a classificação de texto, a extração de citações, a sumarização, bem como correção, entre outras possibilidades.
A plataforma foi construída de maneira que funciona autonomamente, com o potencial de dialogar com qualquer sistema processual e prover seus serviços por meio de interfaces de comunicação. Hoje, evoluiu para abranger outros serviços, como é exemplo o Codex, o Iris e o Prisma, que cuidam da extração, normalização, com conversão de imagens em texto e estruturação de dados.
Todo projeto de inteligência artificial no Judiciário hoje em funcionamento passa pelas etapas que são realizadas pelas soluções do Sinapses, nacionalizado por meio de acordo de cooperação entre o TJRO (Tribunal de Justiça de Rondônia), na gestão do desembargador Walter Waltenberg, e o CNJ, na gestão do ministro Dias Toffoli, e que estão atualmente disponíveis a qualquer tribunal por meio da Plataforma Digital do Poder Judiciário instituída pelo CNJ na gestão do ministro Luiz Fux.
Esse conjunto provê os dados e o ambiente para o treinamento, teste, criação e colocação em funcionamento dos modelos de IA, vencendo os grandes desafios na implementação de qualquer projeto nessa área, além de estabelecer um ambiente por meio do qual as diversas equipes podem colaborar, usando modelos implementados pelo CNJ e por outros tribunais e ajudar na sua evolução.
Houve algum tipo de entrave burocrático na execução e implementação desse projeto?
RAFAEL LEITE PAULO A contratação de tecnologia de ponta é bastante dificultosa, não há soluções prontas na iniciativa privada. O grande entrave foi a necessidade de se utilizar uma abordagem heterodoxa, que transcendeu a simples contratação, focando efetivamente na capacitação e formação de servidores capacitados para atender as demandas do Poder Judiciário.
Além disso, o projeto, com seu enorme potencial, foi objeto da celebração do Acordo de Cooperação que estabeleceu novo modelo de colaboração e forma de os Tribunais se relacionarem com o Conselho Nacional de Justiça, que passa a agir como um incentivador dessas iniciativas e ponto central para a interação, coordenação e colaboração entre as várias iniciativas de melhoria e aprimoramento do Poder Judiciário.
Até que ponto as novas tecnologias podem avançar e aprimorar o sistema de Justiça?
RAFAEL LEITE PAULO Não há limite. O tempo de resposta, a qualidade, a disponibilidade, a eficácia do sistema de Justiça podem sempre avançar e se aprimorar com o uso das novas tecnologias.
A implementação e uso de novas tecnologias não são uma questão estritamente de avanço e de aprimoramento.É efetivamente a forma pela qual a jurisdição passará a ser prestada.O ambiente digital que toca hoje quase a integralidade dos aspectos da vida humana, intermediado pelas soluções tecnológicas, é efetivamente o espaço onde o sistema de Justiça passa a operar e, por meio dele, é que alcança a todos. Sem as novas tecnologias, sem um novo modelo de funcionamento do sistema, efetivamente não há Justiça.
Quais são os gargalos para inovações tecnológicas no judiciário e no funcionalismo público em geral?
RAFAEL LEITE PAULO Os setores de TI estão passando por um momento de transição. Durante as últimas décadas o investimento em inovação tecnológica era a aquisição de maquinário, como foco principal. Por muito tempo, máquinas melhores efetivamente traziam ganhos de desempenho e de produtividade, mas hoje, com a grande capacidade de processamento que elas alcançaram, máquinas melhores têm pouco impacto na melhoria dos serviços de informática.
Esse portanto é um gargalo conceitual, já que ainda há gestores no judiciário e no funcionalismo que alimentam a ideia de que o simples investimento em equipamentos pode trazer uma melhoria nos serviços prestados, quando as demandas atuais exigem o desenvolvimento de novas soluções tecnológicas, o abandono de sistemas legados defasados, inseguros e de baixa performance, a virtualização dos sistemas, aumento de sua disponibilidade e escalabilidade.
Outro gargalo é a capacitação técnica, com poucos servidores capazes de efetivamente trazer novas soluções, havendo a desestruturação do setor de TI em vários tribunais, ou o desvirtuamento de servidores com perfil técnico que são desviados para funções gerenciais, o que implica na perda de conhecimento e a criação de uma alta dependência de atores externos para atender demandas do Poder Judiciário.
A falta de colaboração é outro gargalo, pela multiplicidade de demandas. Muitas vezes, tribunais trabalham em paralelo com desafios idênticos, perdendo-se preciosos recursos financeiros e humanos com uma atividade dispensável e repetida. Com o temor e o desconhecimento de novas tecnologias, alguns setores insistem em utilizar modelos defasados evitando a nuvem, a modularidade, a colaboração.
Por fim, há resistência a mudanças, com o apego a sistemas inadequados para os próximos passos na evolução tecnológica.
Há algum sistema de IA que você tenha como inspiração?
RAFAEL LEITE PAULO O Sinapses, sem sombra de dúvidas, é inspirador, obra do empenho de servidores do Poder Judiciário, abrangendo no seu funcionamento os setores técnicos e da área-fim, pensado para viabilizar a colaboração entre os órgãos da Justiça e voltado para as nossas necessidades peculiares, que dificilmente são bem atendidas por quem não tem o conhecimento do funcionamento interno da justiça e seus desafios.
Além do próprio Sinapses, são referenciais, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, o Victor do STF (Supremo Tribunal Federal) e o Athos do STJ (Superior Tribunal de Justiça), sistemas com robustez, aplicados já efetivamente na jurisdição de seus tribunais, com ganho na qualidade do serviço para os servidores que se beneficiam de seus modelos e das partes que veem seus processos tramitar muito mais rapidamente.
No âmbito internacional, os modelos pré-treinados de processamento de linguagem natural como o GPT-3, da OpenAI, e Bert, do Google, dão a indicação de um caminho que o Poder Judiciário precisa seguir, com o uso de modelos em língua portuguesa, especializados e adaptados para o contexto jurídico, trazendo um universo de possibilidades e de aprimoramentos dos modelos que atualmente são empregados.
Você costuma frisar que as novas tecnologias não devem ser baseadas em soluções isoladas, mas em sistemas colaborativos. Quais as dificuldades em se trabalhar colaborativamente no sistema Judiciário?
RAFAEL LEITE PAULO Os trâmites burocráticos para se implementar a colaboração entre os entes têm a tendência de inibir o ambiente colaborativo. Os instrumentos de colaboração exigem um tempo de tramitação e um número de etapas que é incompatível com a realidade das interações e colaborações que usualmente ocorrem no âmbito da área de tecnologia.
A falta de foco em projetos institucionais, que são do Poder Público, e não de um agente específico, são outro fator, que pode ameaçar projetos com o potencial de gerar vários produtos de qualidade para a atuação do Poder Judiciário, mas cujo tempo de maturação ultrapassa os dois anos da gestão dos órgãos desse Poder.
Ainda há focos de resistência e conservadorismo, e mesmo de pânico entre alguns — mas os números desses têm diminuído. O convívio com a tecnologia e a chance de utilizar ferramentas cada vez mais eficazes têm vencido mesmo os combatentes mais dedicados do atraso.
Qual a importância dos governos para a sociedade?
RAFAEL LEITE PAULO Os governos estabelecem projetos, modelos de investimentos e estruturas de funcionamento voltados a beneficiar a coletividade, sem perspectiva de lucro financeiro, mas sim com o intuito de criar valor social, de aprimorar as condições de vida e os serviços consumidos pela coletividade.
Os governos viabilizam os grandes projetos de ampliação do conhecimento, de desenvolvimento tecnológico, de infraestrutura, de formação da força de trabalho que viabilizará os próximos avanços nessas áreas e a manutenção da estabilidade que assegura tanto o funcionamento dos seus órgãos quanto de toda a estrutura produtiva, seja ela pública ou privada.
É o governo pautado por esses objetivos, em conjunto com um ambiente de livre iniciativa, focado no lucro, em que se gera a virtuosa interação entre visão de grandes objetivos voltados ao atendimento da sociedade e dos indivíduos e a eficiência na sua execução para assegurar a mais rápida consecução de melhorias efetivas e ganhos que alcançam todos.
“Gestão Pública” é uma série do Nexo em parceria com a república.org ,um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo. Em quase quatro anos de atividade, já apoiou mais de 100 projetos. Este projeto conta com a consultoria de Daniela Pinheiro e com edição de Marcelo Coppola.