Foi por pouco que Daniel Lima Ribeiro, promotor de justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, não pediu exoneração do cargo. Estava decidido a deixar a instituição devido a ameaças de morte que vinha recebendo desde que começara a investigar a relação entre uma quadrilha e a prefeitura do município onde servia. Por questões de segurança, foi obrigado a ficar três meses sem sair de casa e chegou ao seu limite. Foram amigos que o convenceram a pedir uma licença sem vencimentos em vez de se desligar do MP. Ribeiro seguiu o conselho, conseguiu a licença e saiu do país para estudar na Duke University, nos Estados Unidos.
O período no exterior lhe ajudou a colocar a carreira em perspectiva. Em 2009, voltou mestre cum laude e assumiu a Promotoria de Justiça de Cordeiro, município de cerca de 22 mil habitantes na região serrana do Rio de Janeiro. Inspirado para colocar em prática muito do que havia aprendido, criou a primeira promotoria digital do país. Ribeiro adquiriu um scanner com recursos próprios e convenceu a sua equipe a digitalizar 22 mil páginas de inquéritos. O aparelho eletrônico foi batizado de Wilson em referência à bola de Tom Hanks no filme “Náufrago”. “Era nossa única companhia em um mar de papéis”, explica Ribeiro.
Desde então, segue dedicado a contribuir com inovações por onde passa. Ele está atualmente no final de um ciclo de dois anos como Coordenador do Laboratório de Inovação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. À frente desse espaço, integrou a equipe que criou o Bússola, um protótipo de ferramenta para auxiliar no acompanhamento de serviços de interesse público, premiado mais recente edição do Judiciário Exponencial. O Bússola é o produto derivado de um método de trabalho chamado de fluxo de transformação, que se vale de uma caixa de ferramentas que possibilita a atuação conjunta dos órgãos de controle e de gestão.
Ribeiro é um grande defensor de laboratórios de inovação. No mundo, a criação desses espaços dentro de instituições governamentais surgiu por volta dos anos 2000. O MindLab dinamarquês, criado em 2002 com o objetivo de inventar, desenvolver e experimentar novas formas de identificar, definir e resolver problemas, é considerado um marco. No Brasil, o LabHacker da Câmara dos Deputados, criado em 2013, foi uma iniciativa pioneira de inovação em transparência, participação e cidadania. O movimento chegou ao Ministério Público em 2018 com a formação do MPLabs, do Ministério Público de Pernambuco. O Inova_MPRJ de Ribeiro surgiu um ano após.
Para Ribeiro, esses espaços são um complemento prático e experimental do novo método que o MP precisa para o esperado salto de resultados. Afinal, nem sempre é a falta de recursos que faz com que um serviço público seja de baixa qualidade. Muitas vezes, aprimoramentos de gestão e controles possibilitam que se faça mais e melhor com menos. A criação de espaços dedicados à agenda da inovação, com a liberdade de experimentar e falhar, é um caminho para maximização de resultados e minimização de custos de programas de governo.
Daniel Ribeiro é o 13º entrevistado da série “Gestão Pública”, uma parceria do Nexo com a república.org . O projeto traz, ao longo dos meses, entrevistas em texto na seção “Profissões” — são conversas com profissionais que atuam na administração pública e ajudam a transformar a vida dos brasileiros.
Gestão Pública
Quem: Daniel Lima Ribeiro
O que: Promotor de justiça
Onde: No Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
No serviço público: À frente do Laboratório de Inovação, trabalha para modernizar o serviço das promotorias fluminenses
Por que escolheu o serviço público?
DANIEL RIBEIRO Ele me escolheu. Quando conheci um pouco mais sobre o Ministério Público, a representação mental que fiz de sua missão e seus poderes me motivou a querer ingressar na instituição. A mim, parecia uma oportunidade única, com potencial de fazer uma contribuição de alto impacto para a vida das pessoas. E ainda por cima, com salário atrativo para o início de carreira.
Você criou a primeira promotoria digital do Brasil. Quais transformações a digitalização promoveu no dia a dia de todos?
DANIEL RIBEIRO Várias. A transformação digital tem vários degraus. O primeiro deles, o mais simples (mas não pouco trabalhoso), é simplesmente digitalizar o papel. Todos os degraus levam à mesma direção, o de ganhos de eficiência no trabalho e da criação de novas oportunidades, de novas configurações da própria atividade. Por mais singelo que hoje pareça (em 2009 ainda era muito raro), simplesmente poder pesquisar textualmente pelo conteúdo dos “autos” de uma investigação foi uma revolução de eficiência. Alguns degraus acima de transformação digital, a digitalização chamou a atenção e permitiu o desenvolvimento e a experimentação com novas habilidades para a equipe — como o trabalho com dados e as ferramentas da ciência de dados.
Como conseguiu convencer três pessoas a digitalizarem 22 mil páginas de inquéritos?
DANIEL RIBEIRO Foi causa e consequência do processo. Apesar do intenso trabalho braçal que isso exigiu — assim como o gerenciamento dessa informação, já que não havia um sistema próprio —, o projeto motivou a equipe. Foi essencial estimular esse senso de copropriedade com o projeto. “Essa inovação é nossa.” As pessoas se impressionariam se soubessem (e explorassem mais) o potencial de tantos servidores públicos quando desafiados a algo que percebem como relevante e novo, integrando um time que reconhece o valor de sua participação.
Por que o scanner utilizado para a empreitada foi batizado de Wilson?
DANIEL RIBEIRO Foi uma metáfora aproveitando o filme “Náufrago” , em que o personagem de Tom Hanks, isolado em uma ilha (como nos sentíamos, no interior e em um mar de papel, sem recursos de tecnologia), faz de uma bola de vôlei (que batiza de Wilson) seu principal companheiro para sobreviver. Sem o nosso Wilson, scanner que adquiri com recursos próprios, não seria possível digitalizar a promotoria.
Digitalização e transparência andam de mãos dadas?
DANIEL RIBEIRO Sem dúvida. Dizer para alguém “sim, você pode consultar os ‘autos’, se sair de onde você mora, esperar algumas horas até ser atendido, e se dispuser a folhear 5.000 páginas de investigação” é impor um custo de transação muito alto. Tanto que o ideal de Governo Aberto, ou melhor, o novo ideal, foi recriado pela Open Government Partnership, levando em conta o potencial da tecnologia e de uma política de dados (digitais) abertos.
Na promotoria da saúde você se valeu do cruzamento de base de dados para identificar uma queda de investimentos, sem justificativa, na área. De onde vem a sua capacitação para trabalhar com base de dados?
DANIEL RIBEIRO Não veio da faculdade de direito. Lá no final da década de 90 (tomara que isso esteja mudando hoje em dia), ainda se repetia a besteira, “fiz direito porque não gosto de matemática”, ou “advogado não entende de números”. No mestrado na Duke University, me surpreendi com o potencial de resultados de uma atuação jurídica lastreada em análise de dados e com base no instrumento (ainda pouco conhecido no Brasil) da avaliação de impactos. Após validar a estratégia de volta ao país, retornei aos EUA para o doutorado e aprofundei meus conhecimentos interdisciplinares. Lembro como foi difícil (e divertido) derrubar a barreira mental. Estudei estatística para policymakers, teoria da decisão na escola de business, métodos quantitativos de pesquisa na ciência política. De volta ao Brasil, ingressei no pós-doutorado em ciência de dados e aprendi a programar.
É importante que promotores tenham fluência em certos programas computacionais e estejam atualizados nas inovações tecnológicas?
DANIEL RIBEIRO Sim. No meu caso, o mergulho nas outras disciplinas foi profundo, mas não precisa ser assim para todos. O que é essencial é cultivar o valor e compromisso de melhoria contínua, o que exige a dedicação de tempo e a criação de um hábito de acompanhar o que há de novo. O aprendizado nunca termina. E é sempre bom aprender algo novo — mais para saber o potencial (em especial, de sinergia com outras ferramentas e métodos) do que necessariamente para ser especialista em tudo. Por outro lado, desenvolvedores de software precisam (e, em alguma medida, já estão fazendo) criar soluções “low code” e “no code”, criando um espaço maior de uso para profissionais que querem extrair potencial da ciência de dados, sem necessariamente precisar aprender a escrever código.
Hoje você trabalha como coordenador do Laboratório de Inovação do MPRJ. Quais projetos e desafios você encontra na atual rotina de trabalho?
DANIEL RIBEIRO Estou fechando um ciclo à frente do Inova_MPRJ, já que a gestão do atual Procurador-Geral de Justiça termina em um mês. Estamos orgulhosos de, em menos de dois anos de trabalho (em meio a uma pandemia), termos desenvolvido importantes protótipos — todos documentados no site do laboratório . Um deles é o Bússola, um protótipo de ferramenta para auxiliar no acompanhamento — pelo gestor, pelo controlador e pelo cidadão — de serviços públicos de interesse público. Tem a possibilidade de configuração de alertas, geração de modelos de providências e usa o método que o Inova_MPRJ desenvolveu — chamado de fluxo de transformação .
Todas as promotorias do Rio de Janeiro já são digitalizadas? Caso não, quais os entraves para que o MPRJ seja todo digital?
DANIEL RIBEIRO Ainda não. É um processo em andamento. Tive a oportunidade de dar prosseguimento ao desenvolvimento de uma nova visão de sistema de gerenciamento digital de investigações. Agora, contando com a equipe do Inova_MPRJ e todas as suas habilidades interdisciplinares. Concluímos o protótipo em dezembro de 2019. O desenvolvimento e implementação estão, desde então, sob responsabilidade da Secretaria de Tecnologia da Informação do MPRJ.
Quais outras modernizações poderiam contribuir para a eficiência do trabalho nas promotorias?
DANIEL RIBEIRO Muitas outras. Desde a simplificação da linguagem — chega de rococó jurídico! —, melhor uso da inteligência artificial, iniciativas de inteligência coletiva como a inovação aberta, etc.
A incorporação de novas tecnologias poderia vir a resolver o problema da morosidade da Justiça ou não existe uma panaceia?
DANIEL RIBEIRO Sem dúvida que a transformação digital pode resolver a morosidade dos Tribunais. Mas apenas reproduzir na tela do computador um documento que antes era em papel, e numa árvore de arquivos o que antes era uma pasta física, não é mudar muita coisa. Em paralelo à tecnologia, é preciso também uma cultura maior de respeito aos precedentes.
Você chegou a ser ameaçado de morte no início da carreira ao investigar uma quadrilha que atuava junto a uma prefeitura. Pela natureza do trabalho, outros promotores também já passaram por situações semelhantes. A seu ver, o MP tem recursos e investe na segurança dos seus promotores?
DANIEL RIBEIRO Sei da competência da Coordenadora de Segurança e Inteligência, responsável pela segurança dos membros do MPRJ, a doutora Elisa Fraga. Não conheço as dificuldades e limitações atuais dessa missão.
Governos importam?
DANIEL RIBEIRO Sim. Este ano estranho de pandemia tornou claro o quanto precisamos da coordenação de serviços públicos, da eficiência regulatória e de programas de governo. Ineficiência custa vida.
“Gestão Pública” é uma série do Nexo em parceria com a república.org ,um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo. Em quase quatro anos de atividade, já apoiou mais de 100 projetos. Este projeto conta com a consultoria de Daniela Pinheiro e com edição de Marcelo Coppola.