Profissões

‘Ouvir e olhar nos olhos são os maiores atributos do médico’

Mariana Vick31 de outubro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h11)
Conheça Monique França, médica da família e comunidade no Rio de Janeiro formada na primeira universidade brasileira a implementar cotas raciais para os cursos de graduação
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Monique França é médica da família e comunidade na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Formada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), entrou na graduação pelo sistema de cotas da instituição, pioneiro em todo o Brasil. Em 2022, quando a Lei de Cotas federal completou 10 anos, a universidade carioca já as aplicava havia 21.

França queria ser médica desde a infância. Tinha vontade de trabalhar junto às comunidades do Rio, nos postos de saúde onde também era atendida. Ter cursado a Uerj foi essencial para concretizar esse desejo.

França é a primeira entrevistada da cobertura especial sobre ações afirmativas que o Nexo faz em parceria com o Instituto Ibirapitanga. A iniciativa traz entrevistas com profissionais negros e negras que tenham sido cotistas em universidades públicas ou que de alguma forma tenham sido beneficiados por ações afirmativas. O objetivo é destacar suas trajetórias e o impacto dessas políticas em suas vidas.

Ações afirmativas

Quem : Monique França, 34 anos

O quê : Médica da família e comunidade

Como foi seu percurso até a universidade? Por que escolheu a carreira que escolheu?

MONIQUE FRANÇA Sempre quis fazer medicina. Acho que vem um pouco desse lugar de brincar com coisas de médico. Mas eu também era uma criança muito adoecida, tinha várias questões respiratórias, e, num dia, fui a um médico que me atendeu superbem. Eu era muito criança, devia ter cinco anos de idade. Estava com muita febre, muito mal, e ele me deu um banho, me colocou no colo… Aquilo fez toda a diferença. Tempos depois, ele veio a me dar aula na Uerj, o professor [José Luiz Muniz] Bandeira [Duarte]. Naquele dia, falei para minha mãe: ‘quero ser igual a esse médico, cuidar das crianças’.

Mais para frente, tive uma experiência muito ruim com outra médica. Foi no Hospital Miguel Couto [no Rio de Janeiro]. Eu vivia com o nariz escorrendo e achei que a resolução dos meus problemas — para não ter que ficar assoando toda hora — era pegar um pedacinho de papel higiênico e enfiar ali. Só que infeccionou. Minha mãe não viu. Inflamou e tive que remover aquele corpo estranho. Eu não parava quieta, porque estava doendo, e ela [a médica] me deu um tapa. Nunca tinha apanhado na vida. Eu já era maior, provavelmente tinha uns sete, oito anos. E ali falei para minha mãe que queria ser médica mesmo, porque queria ser diferente. Não queria tratar as pessoas daquela forma.

Acho que nunca tive dimensão de quão difícil era o curso médico. Minha mãe sempre permitiu que nós, eu e meu irmão, pudéssemos sonhar. Acho que a certeza de que você pode sonhar — e quando a gente sonha, a gente não pensa na dificuldade — sempre me deixou [a impressão] muito viva de que eu conseguiria [fazer o curso].

Como foi sua vida na universidade como cotista?

MONIQUE FRANÇA Foram momentos difíceis e de muita felicidade. Os momentos difíceis são principalmente quando a gente entra na universidade e a demanda de estudo é muito intensa. A gente precisa reprogramar a lógica de estudar, porque, para cada disciplina, há um jeito diferente de fazer uma prova. Na minha primeira prova de anatomia, tirei 3,8. Nunca tinha tirado nota baixa na vida. E aí você se questiona: será que é isso mesmo? Será que eu vou dar conta? Depois entendi que, infelizmente, [naquela disciplina] era um processo de decorar e trabalhei meu cérebro para isso. Na segunda prova tirei 9,8. Porque eu sou superinteligente? Não sei, posso ser. Mas principalmente pelo fato de, a cada disciplina, a cada conteúdo, você ter que reprogramar sua estratégia de aprendizado.

Depois, veio a dificuldade do reconhecimento [da universidade] enquanto espaço meu. Teve uma situação [no internato] em que uma paciente estava acompanhando outro. Ela falou: “ah, vocês são ótimos, são excelentes” — isso se dirigindo a uma amiga minha, que era caloura, que estava fazendo o atendimento junto comigo. A paciente parabenizou essa minha amiga, branca, e falou para mim: “e você? Tá fazendo o quê? Você faz qual curso?”. Ela pressupôs que minha amiga fazia medicina, mas não entendeu que eu poderia fazer também. Eu era inclusive veterana dela. É uma questão em que você se choca com a realidade. Mas, ao mesmo tempo, quando você está no hospital, você vai ter pacientes que vão ficar muito felizes de ver que você é uma estudante de medicina e tem a mesma cor de pele que eles, tem um chegar diferente, um olhar diferente. Essa alegria, esse convívio, é muito importante.

Além disso, tive a possibilidade de encontrar professores. Teve uma professora fundamental da psicologia médica, a Mariana [Bteshe], que, entendendo nossa dificuldade, nosso sofrimento por não ter reconhecimento dentro da faculdade — e dificuldade até mesmo de se manter do ponto de vista objetivo, né? Bandejão, deslocamento, distância para chegar à faculdade… Imagina demorar duas horas e meia no trânsito. Isso prejudica sua produtividade, sua capacidade máxima de aprender—, a Mari montou um grupo só de estudantes negros. A gente inclusive acolheu estudantes de outras universidades. O intuito era ser um espaço de acolhimento, de desabafo, de troca, de falar de qualquer coisa, mas principalmente de a gente cuidar de si. Isso foi um presente para mim. Não era institucionalizado, infelizmente. Mas foi o que permitiu que eu me formasse, sem sombra de dúvidas.

Para além disso, [conheci] pessoas num âmbito muito maior. [A médica de família] Denize Ornelas era uma pessoa de referência. Uma pessoa que veio de [Duque de] Caxias, no Rio, fez faculdade de medicina na UFF [Universidade Federal Fluminense], tinha essa questão de morar longe, devia ter uma vida com dificuldades e era médica, negra, formada dentro da especialidade que eu gostaria. Ela tinha uma postura muito ética. Foi também quem, para além do exemplo, me aproximou da realidade. Quando me formei, não tinha noção de que tinha que ter quase R$ 1.500 para tirar o CRM [documento do Conselho Regional de Medicina]. Eu tinha entrado na universidade, mas minha vida financeira ainda não tinha mudado efetivamente. Não podia dar plantão porque não tinha CRM, mas precisava de R$ 1.500 para pagar o CRM. E aí veio essa pessoa [a Denize] e me ajudou. Como é que alguém faz isso por você? É alguém que já entendeu e passou por esse caminho. Isso é fundamental.

Acabou que a gente decidiu montar um coletivo: o coletivo NegreX , que é de estudantes e médicos negros. Inicialmente eram só estudantes, mas, quando a gente montou, eu estava prestes a me formar, por isso sugeri agregar também os médicos, porque a gente precisa se unir, se aquilombar, se acolher. É um lugar positivo, de relação com os colegas, de pares do ponto de vista racial. A gente troca muito. Tem muita equivalência nas nossas histórias, nas nossas vivências. A maioria de nós tem em comum esse lugar de sermos os primeiros. Talvez para algumas famílias, [a pessoa] não seja a primeira a entrar na universidade, mas certamente [é a primeira] no curso médico, que é bem elitizado.

Sua formação está presente no trabalho que você faz hoje? Como?

MONIQUE FRANÇA Sim, hoje trabalho com medicina. Sou médica. Trabalho com medicina de família no SUS, também em alguns serviços privados — mas, majoritariamente, minha carga horária é na atenção primária, como médica de família, na Unidade Básica de Saúde. Além disso, sou docente em uma faculdade privada aqui no Rio e trabalho dentro da minha especialidade, trazendo a inspiração desse olhar do qual tanto senti falta na minha formação.

Acho que o lugar que mais se aproximou [do trabalho que faço hoje], não à toa, foi onde fiz minha especialização em medicina de família. [Me interessava pela] pediatria também, mas ali eu me via muito num lugar hospitalar, e queria estar mais num lugar de comunidade, sabe? Por isso escolhi medicina de família e comunidade.

Hoje minha formação é meu campo de trabalho. Recentemente, passei também a construir um projeto, o Ninho de Infância Africana, que parece não ter nada a ver com o que faço, mas que tem tudo a ver com minha trajetória. É um espaço de construção de práticas pedagógicas voltadas para crianças negras. Que trabalha a autoestima, o empoderamento, a capacidade de ter competências ancestrais. [O projeto] é do campo educacional, não da medicina, mas entendo que, quanto mais a gente puder fortalecer, sustentar, viabilizar a capacidade das crianças de sonhar, como minha mãe fez… Imagina se eu tivesse total dimensão do que é um vestibular de medicina, o número de concorrentes. Não que eu não soubesse, mas, se tivesse entendido isso como uma dificuldade, teria escolhido outra área ou área nenhuma. Trabalhar a potencialidade dessas crianças tem tudo a ver com quem sou hoje enquanto médica.

O que mudou entre a sua expectativa na universidade e a realidade no mercado de trabalho?

MONIQUE FRANÇA Não tinha muita expectativa na universidade sobre o mercado de trabalho. Nunca tive pares no campo da medicina para além dos meus professores, que eram pessoas que tinham 10 ou 20 anos de formados. O lugar deles não estava atrelado ao que eu pensava [para mim] no pós-formada.

Acho que minha expectativa começou a se criar um pouco na residência. Quando fiz, foi muito intenso. Eram 60 horas semanais de trabalho, de estudo. A carga horária incluía aulas, mas são essencialmente 60 horas de atendimento, cuidado e oferta de serviços para a população.

Minha questão enquanto médica de família era mais um receio de como eu poderia ser recebida. Não me preocupou tanto a remuneração. Saí de uma bolsa de R$ 400 para ganhar uma de R$ 10 mil na época. Tinha tranquilidade financeira para apoiar minha família e me sustentar.

Não sei como responder a essa questão da expectativa, porque, como saí de um cenário “protegido”, que era a universidade, e entrei na residência — em que há trabalho, mas existe supervisão —, me senti muito segura para depois atuar, trabalhar. Isso foi um privilégio, porque, diferentemente de outras especialidades [dentro da medicina], eu tinha uma boa remuneração. Não tive aquela fase que algumas pessoas têm de pegar vários plantões, trabalhar em diversos lugares, sob diversas condições, para se estabelecer financeiramente, ajudar a família, e depois pensar na especialidade.

Qual a maior dificuldade da profissão que você escolheu? E o melhor aspecto?

MONIQUE FRANÇA A maior dificuldade entra num campo da história do Brasil, não só do meu exercício profissional. Trabalho na atenção primária, que é a porta de entrada do SUS, e existe uma grande disputa em relação à manutenção desse modelo de saúde integral, para todos, com equidade, universalidade e integralidade. Há uma dificuldade política que é anterior a mim. Isso me toca muito, porque vim também desse lugar de ser atendida.

Às vezes se misturam meu papel profissional e meu papel enquanto cidadã, de alguém que acredita que as pessoas devem acessar todos os níveis de atenção à saúde e receber o melhor atendimento possível. Tem coisas que esbarram num macro, numa condição política que é muito maior que eu. Não é só a presença do meu corpo que vai ser suficiente para aquilo acontecer. Existem camadas de desigualdade históricas no país que vão atravessar meu cuidado, minha forma de trabalhar.

O melhor aspecto é quando consigo reconhecer isso — ter clareza de que as pessoas podem ser vulneráveis por uma série de atravessamentos sociais, raciais, emocionais, de gênero, de orientação sexual. Isso me coloca num lugar maior de fazer a diferença. E acho que faço a diferença. Faço a diferença quando atendo crianças negras e elas conseguem ver em mim a possibilidade de que elas também podem, em algum momento, estar nesse lugar, por exemplo.

O que te motiva hoje? Quais são os seus planos para o futuro?

MONIQUE FRANÇA O que me motiva é meu trabalho, minha perspectiva de transformar meu ambiente de trabalho, transformar a percepção dos usuários do SUS de que é possível ter saúde de qualidade, apesar de todos os percalços. Não são só flores.

Também gostaria muito de, futuramente, estar no ensino superior. Estou aguardando o resultado de um concurso público que fiz para a Uerj. Quero voltar e levar a todos os estudantes esse olhar que muitas vezes foi negligenciado ao longo da minha graduação. Quero muito inspirar as pessoas, mexer com a zona de conforto que algumas podem ter, fazê-las refletir sobre o que é cuidar em saúde. Talvez meu trabalho seja do tamanho de um grão de mostarda, mas, se florescer, vai ter um resultado bem grande.

O que você diria para alguém que está pensando em trabalhar como médico?

MONIQUE FRANÇA Antes de tudo, não perca sua humanidade. Não se deixe levar pelas dificuldades. Não se permita, por causa das dificuldades, chegar ao ponto de não ouvir o que o outro está ali para te dizer. Ouvir, olhar nos olhos, tocar — acho que esses são os maiores atributos que a gente pode ter enquanto profissional médico. A pessoa está ali na sua maior vulnerabilidade diante de você, trazendo coisas que nem mesmo ela sabe que tem.

Tem que estudar muito? Tem. Tem que trabalhar muito? Vai de cada um, do que cada um deseja para si, de quais são os seus limites. Em qualquer profissão vai haver dificuldades. Mas que você escolha aquela em que, entendendo as dificuldades, você não anule sua humanidade, não anule sua indignação diante de algo que não é adequado no seu campo profissional. Que você não silencie o outro para poder alcançar números. A profissão de médico tem um lugar de privilégio, isso é indiscutível. A gente tem que saber usar esse privilégio a favor de quem precisa, não para nosso próprio favor.

Acima de tudo, a gente tem que pensar que essa é uma profissão. É um trabalho. Existem contas para pagar, responsabilidades a serem cumpridas. É fundamental tirar um pouco essa capa de herói, de sacerdote, porque, se a gente se coloca nesse lugar, a gente não se humaniza e começa a trabalhar de forma mecânica, [se colocando na posição de] responsável por resolver tudo. Vai chegar um momento em que você vai se esgotar, e isso acontece porque você não consegue se olhar como ser humano.

É preciso ter dedicação, esforço. É preciso cavar oportunidades, porque a oportunidade de sonhar é muito desigual. Não deixe a dificuldade apagar o seu sonho — uma hora ele vai chegar. Que este país, este Estado que a gente democraticamente elege, seja capaz de fornecer sonhos, perpetuá-los e ajudar as pessoas a concretizá-los.

A Lei de Cotas completa 10 anos em 2023. Como você a avalia?

MONIQUE FRANÇA Minha avaliação dos 10 anos de cotas — na verdade, digo até além, porque são 20 anos de cotas na Uerj — é que elas são o mínimo de reparação histórica. Não chegam aos pés de toda a reparação que as pessoas negras precisam ter neste país. Se a gente tem estradas, casas, toda a estrutura para que o país avance, é graças à população negra. Quem construiu a universidade foram pessoas negras. Quem construiu o conhecimento deste mundo foram pessoas negras. Se a gente não reconhecer isso, a humanidade está fadada ao fracasso.

A política de cotas é fundamental, mas precisa ser maior. Quando entrei na Uerj, a política de permanência era ínfima. Era só uma bolsa por ano que a gente recebia. Depois ela passou a ser mensal. É preciso pensar que não basta acessar o ensino superior, mas dar garantias de permanência e conclusão [do curso]. Não basta jogar uma pessoa numa universidade e não dar condições de ela se deslocar, ter material, se alimentar, sobreviver. Às vezes, a depender do curso — e vou falar do curso de medicina —, a disponibilidade [necessária para as aulas] é integral. É menos uma força de trabalho para a casa. Como garantir que famílias abram mão de um ou dois salários que uma pessoa jovem pode ter para que ela estude? Isso é um grande privilégio.

A política de cotas ainda é pequena, apesar do grande impacto que gera. Sou uma resposta desse grande impacto. Meu acesso ao ensino superior mudou a vida da minha família, vai mudar minha posteridade, vai mudar uma série de condições que se repetiam de forma viciosa. Mas é preciso entender que todo esse benefício é apenas um passo diante de muitos outros que a gente precisa dar para reparar o povo negro. É preciso pensar a política não como algo concluído, mas que pode avançar.

ESTAVA ERRADO : A primeira versão deste texto afirmava que Denize Ornelas é da cidade de Caxias do Sul (RS). Na verdade, ela é de Duque de Caxias (RJ). O texto foi corrigido às 11h55 de 1º de novembro de 2023.

Exemplo de alinhamento

Este conteúdo faz parte da série “Políticas afirmativas e trajetória profissional”, realizada em parceria com o Instituto Ibirapitanga, organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil, com foco em iniciativas pela equidade racial e sistemas alimentares.

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