A vida de crianças em Igarassu, campeã proporcional em áreas de risco
João Gabriel Silva
01 de fevereiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h20)Localizado na região metropolitana do Recife, município tem quase sete em cada dez moradores convivendo com ameaças de deslizamentos e desabamentos
Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.
A dona de casa Ivonete Cunha, de 53 anos, mora em uma casa com outras quatro pessoas, entre elas um neto de 8 meses e uma neta de 5 anos. Para as crianças, as brincadeiras vêm acompanhadas de uma preocupação: o local está situado numa área de risco, num terreno acidentado que, quando chove, pode ceder e causar uma tragédia. A barreira fica no quintal da casa, onde são feitas atividades domésticas. Como os cômodos da residência são pouco espaçosos, os cuidados em fazer com que os pequenos não brinquem perto dela são frequentes.
Ivonete e a família vivem há mais de 30 anos no bairro de Bela Vista, em Igarassu, na região metropolitana do Recife, a 27 km da capital de Pernambuco. A cidade tem o maior percentual de pessoas vivendo em áreas de risco em todo o Brasil: quase sete em cada dez igarassuenses lidam com o medo recorrente de deslizamentos.
Para além das preocupações que envolvem a segurança de toda a família, como essa condição impacta a vida de quem passa sua primeira infância ali? Nesta reportagem, o Nexo traz relatos dos habitantes do município, resgata o problema histórico brasileiro de moradias precárias e mostra por que ser criança em áreas de risco é diferente.
Ficar sempre de olho. Esse é o cuidado que Ivonete e os outros adultos da família têm com as crianças todos os dias. A porta de madeira que fica entre a cozinha da casa e o quintal é mantida fechada para evitar que elas fiquem sozinhas diante da barreira. “Deixamos os dois brincarem apenas no terraço. É o espaço mais seguro”, conta Ivonete.
A poucos metros da casa de Ivonete, um pouco mais abaixo, está a residência da dona de casa Adenise da Silva, de 28 anos, que tem dois filhos, sendo um deles de 3 anos e outro de 7. O local também sofre ameaças da barreira, que vem se desgastando cada vez mais, principalmente em tempos chuvosos. Para ela, que já saiu e voltou de Bela Vista três vezes, o bairro é esquecido. “Não posso nem comprar um carrinho de brinquedo para minha filha andar por causa das condições de onde moramos”, desabafa.
A pesquisa mais recente sobre áreas de risco no Brasil foi publicada em 2018 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em parceria com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais), instituto vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. O estudo mostra que o município de Igarassu tem 69,8 mil pessoas vivendo nesses locais.
Segundo John Santana, doutorando em geografia pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), o relevo da cidade é semelhante ao de Recife e de outras cidades próximas. “Em Igarassu, que é formado por rochas sedimentares, mais frágeis, as interferências humanas devem ser feitas com cautela”, afirma.
Igarassu é uma das cidades mais antigas do Brasil, fundada ainda em 1535. Atualmente, tem uma população de 119 mil habitantes, conforme estimativa do IBGE. Seu centro histórico, inclusive, é famoso pelo vasto acervo, tendo sido tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1972.
Contudo, para Santana, como muitas cidades, Igarassu sofre com a exclusão social do espaço. De acordo com o geógrafo, as melhores áreas são ocupadas pelo mercado imobiliário, que constroem prédios para pessoas com maior poder aquisitivo. Os mais pobres acabam tendo que morar em locais de risco como forma de sobrevivência. “É mais difícil construir prédios em áreas de encostas”, explica.
Ellen Cunha, de 26 anos, filha de Ivonete Cunha e mãe das crianças de 8 meses e 5 anos, lembra que a última vez que a Defesa Civil de Igarassu esteve no bairro de Bela Vista foi em meados de 2020. Na ocasião, colocou uma lona plástica na barreira, mas o material logo se desgastou. Desde então, a família e os vizinhos de baixo seguem vivendo com medo de algum desastre acontecer. “A prefeitura prometeu que vinha novamente, mas até hoje nada”, lamenta.
A situação das áreas de risco é um problema histórico no Brasil. A urbanização no país, que se intensificou a partir da década de 1950, causou a migração de pessoas de zonas rurais para as cidades. Mas, devido ao inchaço urbano, parte da população passou a construir terrenos irregulares em áreas elevadas.
Esses locais são passíveis de sofrerem efeitos de fenômenos naturais, como as chuvas, que podem provocar deslizamentos de terra e, consequentemente, soterramento das casas. Também demandam maior atenção do poder público por serem de difícil mobilidade e não terem saneamento básico.
A pesquisa produzida pelo IBGE e o Cemaden avaliou 872 cidades de todas as regiões do Brasil. Os resultados apontam que o país possui cerca de 27,7 mil áreas de risco. No Nordeste, onde há 5.471 pontos considerados perigosos, o estado de Pernambuco lidera o ranking regional, com 2.147 áreas.
A publicação também mostra que aproximadamente 8,3 milhões de brasileiros moram nesses locais. A região Sudeste, a mais populosa, possui também a maior concentração, com 4,2 milhões de pessoas. Em seguida, vem o Nordeste, que tem 2,9 milhões de moradores vivendo em situação de risco.
Mas as tragédias vão além de áreas mais vulneráveis. O maior desastre climático do Brasil ocorreu há quase 11 anos, em quatro cidades da região Serrana do Rio de Janeiro, uma área mais abastada. As chuvas deixaram 918 mortos e 30 mil desalojados, segundo o governo do estado. 99 pessoas seguem desaparecidas até hoje.
Em Igarassu, foram registrados 335 deslizamentos na cidade de 2017 até novembro de 2021, segundo a prefeitura da cidade. Nesse período, 385 pessoas ficaram desabrigadas (recebendo abrigo do poder público) e 173 desalojadas (ficando em casas de parentes ou amigos). Porém, não houve nenhuma vítima fatal. Mesmo com pouco dinheiro para a manutenção das áreas de risco, a Defesa Civil local diz fazer o que pode para minimizar os impactos. De acordo com o Executivo municipal, dez pessoas trabalham no órgão.
Define-se como primeira infância os primeiros seis anos completos da criança ou 72 meses de vida. As experiências cotidianas nesse período, incluindo onde moram, são fundamentais para o seu desenvolvimento integral — físico, psicológico, social e intelectual. Isso porque, nessa fase, ocorrem importantes transformações neurológicas.
É o que diz uma pesquisa publicada em 2021 pelo NCPI (Núcleo Ciência Pela Infância) . Segundo o estudo, bairros com falta de saneamento, de água e de luz e sem acesso a áreas verdes e de lazer podem provocar efeitos adversos no futuro das crianças, como dificuldades de completar o ensino médio e de ingressar no mercado de trabalho. Em 2019, 27,3% das crianças brasileiras viviam em domicílios em situação de pobreza.
Para Claudia Vidigal, psicóloga e especialista em primeira infância da Fundação Bernard van Leer, as crianças que residem em áreas mais afastadas enfrentam um problema a mais: a dificuldade em ter acesso a serviços básicos, como creches e postos de saúde. “Quando uma mãe consegue alcançar esses espaços caminhando poucos minutos, é uma forma de cuidado que a cidade tem com eles”, comenta.
No que se refere à saúde, essa não é a realidade dos moradores de Bela Vista. Quando precisam de atendimento em uma UBS (Unidade Básica de Saúde), eles têm que se deslocar para o bairro vizinho. “Quando estava grávida do meu primeiro filho, tinha que descer o morro com mais cuidado ainda para fazer o pré-natal”, lembra Adenise da Silva.
A pesquisa feita pelo IBGE e o Cemaden mostra que idosos e crianças de até 5 anos são mais suscetíveis a sofrerem com desastres em áreas de risco. Trata-se de indivíduos que possuem necessidades especiais para se locomover e possuem menos chances de resistir a possíveis ferimentos, visto que passam a maior parte do tempo em casa. O estudo também revela que 9,22% da população que vive em áreas de risco no Brasil estão na primeira infância.
Apesar das crianças não terem noção dos perigos que correm, elas continuam vivendo a infância como podem. Seus familiares seguem na esperança de que haja uma solução para o problema das barreiras. Mas o maior desejo deles é que sejam reconhecidos como pessoas. “Às vezes eu tenho vontade de desistir de cobrar mudanças, mas penso nos meus filhos. Desejo o melhor para eles”, diz Adenise.
A prefeitura de Igarassu diz que o orçamento para infraestrutura e medidas de prevenção em áreas de risco depende de repasses do governo federal, algo que vem caindo nos últimos anos. Em 2021, o valor foi de menos de R$ 300 mil. O município afirma ainda que tenta prever um maior investimento para o PPA (Plano Plurianual) 2022-2026, um documento que estabelece as diretrizes e objetivos do poder público municipal.
A prefeitura diz também que monitora continuamente as áreas de risco da cidade e vem realizando medidas preventivas. Em 2021, seis muros de arrimo foram recuperados, de acordo com a Secretaria de Infraestrutura e Cidades. As lonas são colocadas apenas em locais que demandam alto custo de investimento.
Em 2018, a prefeitura de Igarassu criou um comitê de enfrentamento de danos causados pelas chuvas. Durante os temporais, a Secretaria de Políticas Sociais se instala na Guarda Municipal e recebe demandas por telefone e WhatsApp. A gestão municipal diz também que costuma fazer atualizações de cadastro das pessoas que vivem nessas regiões e que os habitantes de Bela Vista são, na medida do possível, atendidos por políticas de assistência social.
O Nexo também questionou a prefeitura de Igarassu sobre a necessidade de instalação de uma unidade de saúde em Bela Vista, algo constantemente pedido pelos moradores do bairro. Porém, não obteve resposta.
Sobre a alta porcentagem de pessoas vivendo em áreas de risco no município, a prefeitura diz que a informação está defasada, visto que a pesquisa do IBGE e do Cemaden utilizam dados do Censo Demográfico de 2010. Nos últimos dez anos, segundo o poder Executivo municipal, foram construídos vários conjuntos residenciais dentro de programas sociais de habitação. Espera-se que o novo Censo a ser realizado em 2022 revele um número menor.
No entanto, na avaliação de John Santana, a quantidade de pessoas vivendo em locais de risco em todo o Brasil pode ser maior hoje devido ao aumento de habitantes no país. De acordo com o IBGE, estima-se que a população brasileira em 2021 seja de 213,3 milhões de pessoas, enquanto que em 2010 era de 195,7 milhões. “Novas áreas de risco surgiram nos últimos anos. É um processo contínuo em várias cidades”, disse o geógrafo.
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