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Alicia Kowaltowski

Sobre fibras: as moléculas em que mais é menos

18 de outubro de 2023

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Na ausência de contribuições produtivas para a merda figurativa em que nos encontramos, vou falar de ciência e das fezes literais

Aviso que esta será uma coluna sobre merda. Não no sentido figurativo, embora o universo que nos cerca realmente esteja uma merda. Por algum motivo demasiadamente otimista, eu tinha a ilusão de que o mundo pós-pandemia perceberia que somos todos Homo sapiens. Sonhei que o exemplo de força de um vírus demonstraria que as fronteiras e barreiras entre países e culturas não são páreo para as semelhanças da nossa biologia. Mas exemplos de conflitos internacionais lastimavelmente demonstram o exato contrário. E não são somente conflitos internacionais. Sou professora da maior universidade do Brasil, que se encontra enquanto escrevo esta coluna na mais incompreensível e intransigente das paralisações estudantis que já presenciei; uma paralisação na qual não há vestígio de pautas científicas e persiste profunda falta de reconhecimento do poder da ciência como mecanismo de promoção de união, progresso e melhorias sociais .

Em meio a tudo isso e na ausência de contribuições produtivas que eu possa fazer em fórum público para a merda figurativa em que nos encontramos, vou falar de ciência e das fezes literais, ou pelo menos de um de seus componentes importantes: as fibras.

Fibras são moléculas presentes nas nossas dietas e que a maioria de nós provavelmente come menos do que deveria. Estudos em populações norte-americanas indicam que menos de 10% da população atinge níveis alimentares ideais de fibras na dieta. Mesmo no Brasil, onde existe o hábito tradicional de comer alimentos ricos em fibras, como o feijão, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicam que está ocorrendo uma queda acentuada do consumo de fibras pela população com o passar dos anos, paralela à troca de hábitos alimentares. Isso é preocupante pois é amplamente comprovado que a ingestão adequada de fibras está associada à prevenção de doenças cardiovasculares, hipertensão, obesidade, dislipidemias (alterações dos níveis de colesterol e triglicerídeos), diabetes e câncer colorretal.

Mas o que são fibras? Talvez cause espanto que as fibras alimentares faça m parte do grupo de moléculas que chamamos de carboidratos, em que há quantidades aproximadamente iguais de átomos de carbono e oxigênio. Diferentemente de açúcares (carboidratos menores e que geralmente possuem sabor doce) ou amidos (moléculas grandes, compostas por centenas ou milhares de moléculas do açúcar glicose ligadas entre si), fibras não podem ser digeridas por nós e, portanto, não nos fornecem calorias. Isso acontece porque as ligações entre as moléculas menores das fibras são organizadas em uma conformação estrutural que não temos enzimas digestivas para quebrar. Como resultado, essas moléculas presentes na nossa comida não produzem moléculas menores capazes de ser absorvidas pelo sangue e saem sem ser metabolizadas nas fezes.

Essa estrutura difícil de quebrar não é coincidência. Fibras foram selecionadas evolutivamente para exercerem funções estruturais e por isso são altamente resistentes. A maior parte das que comemos são moléculas como a celulose, responsáveis por manter a estrutura rígida de plantas, que não possuem ossos como nós, animais vertebrados, e precisam desse “arcabouço molecular” para se sustentar. De fato, as fibras na nossa alimentação vêm praticamente todas dos vegetais que comemos, pois não comemos animais invertebrados ( como insetos ou crustáceos) em quantidade suficiente para contabilizar significativamente na ingestão de fibras. A diminuição progressiva da ingestão de fibras que vemos na nossa população é resultado de uma conjunção entre troca de dietas, que agora dão preferência por mais produtos animais, e ingestão de mais produtos vegetais processados para remover suas fibras. O ser humano processa alimentos assim porque justificadamente evoluiu para gostar mais do sabor de açúcares e amidos, que nos dão calorias, do que fibras, que literalmente têm gosto de cartolina (pois são compostas predominantemente pela mesma celulose que o papel).

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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