O gravíssimo processo de erosão da democracia atualmente em curso no Brasil não tem tirado apenas o sono de brasileiros e brasileiras, mas vem comprometendo também nossa capacidade de sonhar. Desde 2019, dia após dia, francos ataques a pilares do nosso regime democrático e ameaças explícitas de ruptura institucional promovidas pelo presidente da República vêm se avolumando e agravando de forma que a sociedade civil foi obrigada a adormecer uma de suas características mais marcantes: a atitude propositiva, de produção incessante de conhecimento, propostas e diálogos com vistas à construção de um futuro muito mais próspero para o país.
Fomos forçados a assumir uma postura predominantemente reativa e defensiva frente à conjuntura marcada pelo progressivo fechamento do espaço cívico e tentativas concretas de cerceamento de liberdades fundamentais, por recorrentes violações a direitos e garantias constitucionais e por restrições drásticas nos mecanismos de transparência e participação social. Imergimos na busca por saídas emergenciais para as milhões de famílias que voltaram a passar fome no Brasil e tentar garantir o mais básico de todos os direitos, à vida, expressamente atacado por Jair Bolsonaro em meio à pandemia de covid-19 e suas agudas consequências.
Fomos tragados pelas urgências e pela iminência de rupturas irremediáveis. Priorizar calamidades tornou-se simplesmente impraticável, por isso, multiplicar esforços e formas de cooperação vem sendo o caminho possível para enfrentar a profusão de crises e desafios que temos enfrentado neste país.
E é justamente a partir dessa perspectiva que a defesa intransigente da democracia se torna, hoje, ainda mais premente e fundamental no Brasil. Isso porque ela é condição básica para que lutas por direitos ou avanços em quaisquer agendas e políticas públicas possam ser devida e livremente realizadas. Sem democracia não há garantia de direitos e muito menos abertura para que sejam pleiteados. Ademais, a conquista de direitos é por essência positiva e requer a efervescência construtiva por parte dos atores que desejam lográ-la. Por isso, ao mesmo tempo em que é vital conter a atual escalada autoritária e as movimentações golpistas em curso, torna-se imprescindível à sociedade civil manter viva a capacidade de propor, criar, sonhar e construir a democracia que queremos.
Fomos forçados a assumir uma postura reativa e defensiva frente à conjuntura marcada pelo progressivo fechamento do espaço cívico e tentativas concretas de cerceamento de liberdades fundamentais
Ainda que, nas circunstâncias atuais, impedir retrocessos já seja uma grande vitória, o esporte nos ensina que quando estamos sob ataque, a defesa necessita estar acompanhada de um contra-ataque muito bem armado e efetivo para que haja chances de se vencer o jogo. Tal máxima se revela ainda mais pertinente diante da confirmação de que o Brasil vem sendo palco do fenômeno descrito por Levitsky e Ziblatt na obra “Como as democracias morrem”, em que instituições, práticas e valores fundamentais à democracia vão sendo gradualmente depreciados, capturados, fragilizados e corroídos pela ação de um líder de tendência autoritária por dentro do próprio sistema democrático. Sendo assim, se já sabíamos que a solidez de um regime democrático transcende – e muito – a garantia de processos eleitorais periódicos, fortalecer e aperfeiçoar as regras deste jogo e criar mecanismos mais assertivos de proteção a investidas autoritárias dessa natureza passa a ser impreterível e imperativo. Mas, primeiramente, é preciso rememorar e mirar a direção do nosso caminhar.
A democracia que queremos é, antes de tudo, inspiradora e verdadeiramente acessível à totalidade de cidadãos e cidadãs do nosso país. Reflexo da real diversidade da sociedade, ela é representativa da pluralidade de existências e perspectivas e garante respeito, diálogo e acesso ao poder a todas as populações. Ela precisa ser, portanto, ativamente antirracista e implacável no combate a quaisquer discriminações. Na democracia que queremos construir, as equidades são inegociáveis nas arenas de poder e nos espaços de participação social e, por isso, é necessário que se assegurem as condições legais, materiais, intelectuais e de acesso à informação para que a ocupação desses espaços seja uma realidade para todos e todas. Logo, abertura, integridade e transparência são elementos indispensáveis desse regime realmente democrático, e devem ser constituintes de todas as instituições, inclusive dos partidos políticos, que ganham em força e credibilidade à medida que também interiorizam práticas e princípios de uma democracia legítima. A democracia que queremos é, acima de tudo, promotora de uma sociedade efetivamente justa, inclusiva e pacífica, que não prive um só indivíduo dos direitos e das liberdades por ela assegurados.
Por isso, avançar na solidez da democracia, no amadurecimento do arcabouço normativo que alicerça o regime democrático brasileiro, no fortalecimento da cultura democrática no seio da sociedade e no revigoramento das instituições é imprescindível para que nos afastemos dos riscos de sermos submetidos a processos de corrosão democrática como o que vivemos hoje no Brasil. Não há outro caminho senão recuperar nossa capacidade de sonhar e lutar pela democracia que queremos.
Flávia Pellegrino é jornalista, mestre em ciência política e coordenadora-executiva do Pacto pela Democracia.