Coluna
Januária Cristina Alves
A expressão e a criação das crianças e jovens no universo digital
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Os ataques às escolas que tiraram o sono de pais, educadores e de todos nós, cidadãos minimamente preocupados com o bem-estar físico e mental da sociedade em que vivemos, ainda reverberam no universo on e offline. A conexão entre a violência real e virtual, para o bem e para o mal, fez sentido e o sinal de alerta para que prestemos atenção ao que ocorre dentro das telinhas que expressa sua face mais sombria aqui fora acendeu. E pode ser que seja ele a iluminar a nossa busca por uma relação mais saudável com esses universos, que já são quase que uma coisa só.
As crianças e jovens estão nas redes e os números, crescentes ano a ano, não mentem. A pesquisa Tic Kids Online Brasil edição 2022, a mais importante no setor, que mapeia as tendências atuais quanto ao acesso e o uso de tecnologias de informação e comunicação por crianças e adolescentes, revela que aqui no Brasil temos 24 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos utilizando a internet (sendo que é preciso frisar que há um contingente significativo dessa população fora dela, algo em torno de 940 mil crianças e jovens). Não é pouca coisa. Desse montante, 86% possui perfil em redes sociais (aproximadamente 21 milhões), sendo que a participação em redes sociais é alta em todas as faixas etárias, atingindo quase a totalidade dos usuários de internet de 15 a 17 anos (96%). No online eles estudam, pesquisam, buscam ajuda para questões de saúde (inclusive de saúde mental), conversam e também são expostos à conteúdos chamados “sensíveis”, ou seja, completamente desapropriados para eles como automutilação, formas de cometer suicídio, experiências com drogas e outros temas que são perigosos até mesmo para os adultos. Se a observação cotidiana já dava conta desse fenômeno, o quantitativo dessa situação faz com que o sinal de alerta se intensifique e peça soluções ou encaminhamentos práticos e que possam ser estabelecidos o mais rapidamente possível.
Segundo Luísa Adib, coordenadora de pesquisa do Tic Kids Online, em entrevista para esta coluna, os dados da pesquisa atestaram uma realidade para a qual precisamos estar muito atentos: esse público parece dominar muito bem as chamadas “habilidades operacionais” que são aquelas que servem para baixarem um aplicativo ou mesmo proteger o celular com o uso de um pin. Mas isso não ocorre na mesma proporção quando trata-se do uso das “habilidades informacionais”, que são aquelas que permitem que se possa reconhecer se uma informação é confiável ou não. Enquanto 94% dos entrevistados disseram saber como baixar ou instalar um aplicativo, apenas 62% sabem como verificar se um site é confiável.
É urgente refletirmos sobre como as mídias digitais veem as crianças e como moldam a sua visão sobre si próprias e seu papel como indivíduos e cidadãos
Para ela, é importante que pais e educadores atentem para a necessidade de esse público compreender não apenas o funcionamento da internet e das mídias sociais, mas especialmente como se dá a distribuição dos conteúdos e, sobretudo, de que maneira os algoritmos determinam o acesso a eles. Dentre os pesquisados, 50% acham que a primeira publicação vista nas redes sociais é a última que foi postada por um dos contatos e 51% acreditam que todos encontram as mesmas informações quando pesquisam na internet. Somente 52% dos entrevistados relataram saber diferenciar um conteúdo patrocinado, seja ele um vídeo ou um texto postado nas redes sociais, de um conteúdo de outra natureza. Esse tipo de operação é considerada uma “habilidade criativa”, aquela que é mais complexa, pois envolve um conhecimento dos modos de produção de conteúdos nesse universo.
Nesse sentido, a pesquisa também revela o que pais e educadores já atestam: crianças e jovens estão se tornando cada vez mais leitores superficiais dos mais diversos conteúdos que acessam. O que é um aparente contrassenso, uma vez que eles também são produtores de conteúdo. Se escrevem, filmam, comentam é esperado que saibam não apenas como fazem, mas também porque. Tal fato, a meu ver, nos leva a uma reflexão que há muito vem permeando os estudos da Educação Midiática entre os pesquisadores que analisam os resultados de sua implementação nas escolas: será que expor os alunos à produção de conteúdos seria suficiente para educá-los midiaticamente? Será que a produção desses materiais, de fato, é criação de cultura, entendida aqui como cocriação e recriação de si e do universo em que vivem? Será que a produção de conteúdo sem a reflexão e avaliação crítica do que é produzido tem efeito na conscientização do seu papel como leitores e construtores da sociedade em que vivem?
Essas são questões fundamentais de serem encaminhadas nas práticas pedagógicas e educativas que estão sendo pensadas para o enfrentamento dos desafios impostos pelo uso da internet e das mídias digitais. É urgente refletirmos sobre como esses meios veem as crianças e como moldam a sua visão sobre si próprias e seu papel como indivíduos e cidadãos. Serão apenas objetos de consumo? Ou “inocentes digitais” que precisam ser constantemente dirigidos e monitorados, ao invés de seres com quem possamos dialogar e trocar impressões sobre o que se passa no nosso entorno? Será que estamos deixando que falem e se expressem por si ou estamos fazendo tudo por eles?
Como afirma a psicanalista Helena Maffei Cruz em uma entrevista a respeito do modo como a nossa sociedade vê as crianças e jovens: “eu penso que nós somos uma sociedade bastante oral (voraz mesmo), eu imaginaria muito grosseiramente, que temos uma forte tendência a suprir muito oralmente os nossos filhos. Isso não significa só dar objetos de consumo, mas significa FALAR POR eles. Fala-se muito em independência, etc. As crianças têm o direito de serem malcriadas, mas o direito à PALAVRA mesmo (‘eu não quero fazer isso’, ‘eu não quero fazer inglês, judô, tênis…’), esse é mais difícil. O modelo oral é esse: é o ‘encher’ e ‘encher’, a criança tem que ser ‘preenchida’ o tempo todo de cultura, esporte, lazer…”. O professor Edmir Perrotti, estudioso das questões sobre o desconfinamento cultural da infância, complementa o raciocínio: “se identificarmos cultura como criação-recriação de si, do outro e do mundo, não poderemos aceitar o deslocamento do lugar que o nosso mundo procura impor à criança e a todos aqueles que, por uma razão ou outra, estão inferiorizados. Não podemos aceitar, enfim, que seres humanos sejam transformados em objeto da cultura erigida em sujeito”.
Se estamos observando que o uso das mídias está inserido no sentido social das crianças e que a percepção que elas possuem desses meios está mediada pelos significados que lhes são atribuídos pela família e pela escola, é imperativo que, nesses ambientes, a mídia seja discutida como elemento de formação da identidade dessas crianças e jovens. Somente se percebendo como sujeitos criadores de cultura e construindo formas de participação verdadeiramente autênticas esse público poderá perceber novas formas de se relacionar com elas.
Finalizo essa reflexão concordando com Jana Campelo, professora da Universidade de Palermo (Argentina), que aposta na Educação Midiática como prática para a construção de sujeitos mais críticos e competentes para trafegar entre os universos on e offline: “a Educação Midiática não é só sobre usar a mídia e a tecnologia, mas sobre a compreensão crítica, cultura participativa, liberdade de expressão e engajamento civil”. Como diria o grande escritor brasileiro Guimarães Rosa: “as coisas mudam no devagar depressa dos tempos”. Precisamos, então, começar a mudar, e depressa.
Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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