A militarização da acolhida humanitária no Brasil é um erro

Ensaio

A militarização da acolhida humanitária no Brasil é um erro
Foto: Sgt Johnson/Força Aérea Brasileira/ Creative Commons

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Juana Kweitel e Pablo Ceriani


10 de abril de 2018

Normas de migração não sustentam a ideia de que o Ministério da Defesa deve liderar a gestão do afluxo de refugiados e migrantes. Essa função tem mais relação com os ministérios de Justiça, Desenvolvimento Social e Saúde

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Desde 2017, o Brasil tem recebido de forma solidária migrantes e refugiados que buscam acolhida e proteção depois da dura decisão de deixar seus lares devido à crise humanitária que assola a Venezuela.

De acordo com a Polícia Federal brasileira, chegou ao Brasil no mês de fevereiro deste ano uma média diária de 800 venezuelanos. Mais de 30 mil cruzam a fronteira com destino a Colômbia diariamente.

No Brasil, a chegada de venezuelanos se concentra em Roraima. Após cruzarem a fronteira terrestre no extremo norte do nosso país, a grande maioria ali permanece.

De forma tardia o governo federal brasileiro decidiu assumir sua responsabilidade e atuar de fato na situação. Em 15 de fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer editou a Medida Provisória 820 que dispõe sobre medidas de “assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária”. A MP institui um Comitê Federal de Assistência Emergencial para acolhimento e deve ser ainda votada no Congresso. Já foram apresentadas mais de 100 emendas ao texto.

O decreto 9.285 de 15 de fevereiro de 2018 reconhece a situação de vulnerabilidade provocada pela crise humanitária na Venezuela, enquadrando-a na MP 820. Já o decreto 9.286 dispõe sobre a composição do Comitê Federal e determina que o Ministério da Defesa atue como sua Secretaria – Executiva.

Em 9 de março uma nova Medida Provisória ( 823 ) abriu um crédito extraordinário no valor R$190 milhões em favor justamente do Ministério da Defesa para “assistência emergencial e acolhimento humanitário de pessoas advindas da República Bolivariana da Venezuela”.

Militarizar a resposta humanitária à chegada de migrantes e refugiados vai na contramão do que a Nova Lei de Migração ( Lei 13.445/17 ) preconiza. Nada nas normas anteriores dá as bases para que seja o Ministério da Defesa quem assuma a liderança na gestão da resposta humanitária que tem mais relação com as funções dos ministérios de Justiça, Desenvolvimento Social e Saúde.

Organizações especializadas em assistência humanitária ao redor do mundo veem uma clara incompatibilidade entre o papel dos Exércitos nacionais e a condução de ação humanitária

No dia 23 de março, a Casa Civil promoveu uma reunião para apresentar as medidas que estão sendo adotadas. O General de Brigada Eduardo Pazuello, chefe do Comando da Base de Apoio Logístico do Exército, apresentou o plano de ação que será desenvolvido em Roraima.

Aspectos da apresentação do General deixaram perplexas as organizações da sociedade civil presentes. Muitos assuntos ainda precisam ser esclarecidos.

Organizações que atuam na região questionam a lógica dos novos abrigos. Um deles, com capacidade para 1.500 pessoas, estava sendo projetado dentro da Terra Indígena São Marcos (na Comunidade Boca da Mata). Por um lado, não se entendia por que, em vez de fortalecer os equipamentos nas cidades de Boa Vista e Manaus, onde os migrantes teriam condições de desenvolver atividades remuneradas e recompor suas vidas, este abrigo estava sendo planejado em uma área distante onde os migrantes não teriam como se deslocar nem reorganizar suas vidas. Por outro lado, preocupava o crescimento da presença do Exército e o enorme impacto que um aumento da população teria nos povos indígenas. A negociação estava sendo realizada pelo presidente da  Funai (Fundação Nacional do Índio), que também é um general. Os indígenas rejeitaram a proposta, e o governo estaria buscando alternativas.

O general Pazuello anunciou a criação de “passes” sem explicar claramente como eles funcionariam. Desperta inquietude a pretensão de limitar o direito humano de ir e vir dos migrantes e refugiados uma vez estabelecidos no Brasil. Essa proposta urge esclarecimento.

Finalmente, preocupa muito a criação de uma barreira sanitária na fronteira que em vez  de promover o tratamento em questões de saúde sirva para impedir ou dificultar a entrada dos migrantes e refugiados de forma discriminatória.

Por último, as organizações questionam por que é o Exército quem está fazendo a gestão da resposta humanitária à chegada dos venezuelanos.

Organizações especializadas em assistência humanitária ao redor do mundo veem uma clara incompatibilidade entre o papel dos Exércitos nacionais e a condução de ação humanitária.

Analisando a questão nos contextos de combate, essas organizações são categóricas sobre a diferença entre os dois: por um lado, a ação humanitária tem como objetivo aliviar o sofrimento humano independentemente da identidade da pessoa; a força militar, por outro lado, tem na sua natureza tomar posição.

A gestão dos novos equipamentos construídos em Roraima deve ser transferida a órgãos públicos civis posto que os serviços que ali serão fornecidos não são de cunho militar.

Diante desse quadro, é necessária uma supervisão independente da situação na fronteira. Todavia isso não existe. Há também ausência de mecanismos para denunciar abusos, como determinam os Princípios da ONU sobre Direitos Humanos nas Fronteiras.

A militarização da resposta humanitária à chegada de fluxos de refugiados é um problema em si, agravado no Brasil pelo fato de que o diálogo do Poder Público com aqueles que vêm trabalhando diariamente com essa população na fronteira está muito aquém do esperado.

Juana Kweitel é diretora-executiva da Conectas Direitos Humanos. É mestre em direito internacional dos direitos humanos pela Essex University, Reino Unido, e em ciência política pela Universidade de São Paulo.

 Pablo Ceriani é coord​enador do “Programa Migración y Asilo​” ​​da UNLa​ (Universidade Nacional de Lanús, Argentina)  e ex-vice-presidente d​o Comit​ê de D​ireitos dos Tra​balhadores Migrantes ​e suas Familias d​a​ ONU​.​

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