A cobertura jornalística da cultura na Folha de São Paulo e no Público (2012-2018): um olhar cruzado entre Brasil e Portugal
Autoria
Mariana Scalabrin Müller
LattesÁrea e sub-área
Comunicação/Jornalismo Cultural
Publicado em
28/04/2023
Como participar?
O número de brasileiros em Portugal é expressivo e vem aumentando nos últimos anos — em setembro de 2023 eram quase 400 mil. Entre os atrativos para a migração estão a língua em comum e a facilitação de processos burocráticos para regularização da residência. Essa ligação presente na contemporaneidade traz consigo marcas históricas: os países compartilham um passado em que estiveram nas posições de metrópole e colônia, e dessa hierarquia e suas consequências vieram relações políticas e culturais que impactam até hoje suas formas de se enxergarem mutuamente.
Esta pesquisa mostra os modos de representação jornalística de cada país sobre a produção cultural do outro. O foco são dois jornais: o Público, português, e a Folha de S.Paulo, brasileira. Mais de 1.000 textos produzidos em 2012 e em 2018 foram analisados. Os resultados mostram que as coberturas possuem similaridades e diferenças referentes às suas abordagens e perspectivas.
Quais as características da cobertura jornalística da cultura brasileira em Portugal e vice-versa?
Brasil e Portugal têm uma relação desde o século 16, quando começou o período colonial. O contexto sócio-histórico dos dois países é marcado por uma série de eventos e particularidades. Destacam-se o genocídio das populações indígenas, o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, a transferência da coroa Portuguesa para o Brasil em 1808, o atípico processo de independência do Brasil, a língua que os dois países compartilham e as diversas ondas migratórias.

Homem lê jornal em um shopping center em Lisboa
Atualmente, os brasileiros são a maior comunidade de migrantes em Portugal, situação fruto de uma nova onda migratória. Apesar disso, a relação contemporânea entre os dois países ainda carece de estudo.
Esta pesquisa apresenta uma análise cruzada da cobertura cultural de Brasil e Portugal. O ponto de partida são referências ao Brasil no jornal português Público e referências a Portugal no jornal brasileiro Folha de S.Paulo em 2012 e em 2018.
A caracterização das coberturas jornalísticas abrange três eixos: 1) padrões editoriais (fontes, setores culturais, valores-notícia — critérios para selecionar o que vai ser noticiado —, protagonistas dos artigos, entre outros); 2) como os jornalistas de cultura dos dois jornais descrevem suas rotinas de trabalho e o processo de seleção dos assuntos que serão publicados; 3) diferenças e semelhanças na cobertura dos dois jornais, com identificação de padrões editoriais e de estereótipos.
Para fazer esse mapeamento, foi realizada uma análise de conteúdo em uma amostra de 1.118 textos. Os dois jornais apresentam uma noção de cultura elitista, centrada no Ocidente e de viés acadêmico. Foram observadas, também, tendências assimétricas entre a cobertura cultural brasileira e a portuguesa.
Folha e Público divergem no olhar que têm quanto à produção cultural da ex-metrópole ou ex-colônia. Há uma proximidade maior por parte do jornal português, enquanto se verifica um certo distanciamento no brasileiro. Diversos elementos contribuem para essa perspectiva assimétrica, elementos que vão além das diferenças da indústria cultural dos dois países.
As ondas migratórias de portugueses para o Brasil e a mudança da coroa portuguesa, em 1808, podem ter contribuído para uma proximidade visível em notícias do jornal português que fazem referência ao Brasil como “país-irmão” ou de uma “história compartilhada”. Por outro lado, os movimentos de independência do Brasil e de uma ideia imaginada de nação têm como base um distanciamento de Portugal.
Padrões e características da cobertura cultural analisada permitem a identificação de estereótipos sobre a produção cultural de cada país. A Folha destaca a literatura lusa, enquanto o jornal Público enfatiza a música brasileira. A cobertura dessas duas áreas é mais diversa e aprofundada que a de outras. Ao mesmo tempo, essa abordagem acaba por reforçar dois estereótipos: a ideia de que os brasileiros são melhores fazendo música do que em outras manifestações artísticas e de que os portugueses são melhores escrevendo. Reforça-se, ainda, a ideia de que essas duas áreas são representativas da produção cultural dos dois países.
Nessa lógica, o predomínio de áreas tradicionais (literatura e música, por exemplo) sobre áreas não-hegemônicas ou emergentes (performance e arte de rua, por exemplo) acaba por expor uma noção tradicional de cultura. Os dois jornais apresentam em suas coberturas uma versão restrita da cultura, alinhada com a das indústrias culturais, das elites e das instituições de mais prestígio em cada país. Questões decoloniais raramente aparecem na cobertura, exceto quando pessoas em destaque enfatizam grupos aos quais pertencem.
A maioria dos artigos publicados foca as cidades em que se localizam as sedes dos dois jornais, São Paulo e Lisboa, o que revela uma cobertura desigual das demais regiões brasileiras e portuguesas. Por conta da pressão econômica nas redações dos jornais, os editores entrevistados reforçaram a dificuldade de cobrir outras geografias.
Além disso, em geral, é dada menor ênfase a números de audiência e vendas, o que acaba por distanciar a cobertura dos jornais de artistas emergentes com trajetórias mais populares, enquanto artistas legitimados (por prêmios, por exemplo) têm mais espaço.
Pessoas que trabalham na área cultural, sejam artistas, produtores ou empresários. Jornalistas, historiadores, cientistas sociais e pesquisadores de diferentes áreas das ciências sociais aplicadas.
Mariana Scalabrin Müller é doutora em estudos de comunicação pela Universidade do Minho, em Portugal. Dedica-se a análises de coberturas mediáticas, com ênfase em questões relacionadas ao ambiente digital, ao setor criativo, à diversidade de gênero, às representações sociais e aos estereótipos. Atualmente, é pesquisadora de pós-doc no projeto YouNDigital – Jovens, Notícias e Cidadania Digital, na Universidade Lusófona. Foi bolsista de doutorado da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e pesquisadora visitante na Erasmus University Rotterdam. Atuou como repórter e editora nas áreas de educação, cultura e sustentabilidade no jornal Zero Hora e na TVE-RS. É jornalista e mestre em comunicação pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Referências
- ARENAS, F. (2003). Utopias of Otherness – Nationhood and Subjectivity in Portugal and Brazil. University of Minnesota Press.
- HALL, S.; CHRITCHER, C.; JEFFERSON, T.; CLARKE, J.; & ROBERTS, B. (1978). The social production of news: Mugging in the media. In S. Hall, C. Chritcher, T. Jefferson, J. Clarke & B. Roberts (Eds.), Policing the Crisis (pp.53-77). The Macmillan Press.
- SCHWACZ, L. M.; & STARLING, H. M. (2015). Brasil: Uma biografia. Companhia das Letras.
- TAJFEL, H. (1963). Stereotypes. Race, 5(2), 3–14. DOI: 10.1177/030639686300500201
- TRAQUINA, N. (2013). Teorias do Jornalismo: A tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Insular.