Coluna
Luciana Brito
Ameaça à democracia? A fome, a morte e um desabafo ‘a palo seco’
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Violência e humilhação foram os legados mais nefastos que a escravidão nos deixou, muito mais do que as imagens das correntes e até mesmo das fortunas deixadas para as famílias herdeiras beneficiadas pelo uso da mão de obra escravizada. Para as pessoas brancas pobres, inclusive aquelas imigrantes que chegaram ao Brasil em um tempo relativamente recente, o cativeiro lhes legou a branquitude como principal patrimônio em um país no qual ter a pele negra significa carregar a marca de um corpo cujo padecimento é natural. Para Frank Wilderson, autor do livro “Afropessimismo”, a história da escravidão ainda está em curso, pois ela ainda orienta políticas e práticas cotidianas que nos ensinam sobre o lugar natural de sofrimento das pessoas negras, enquanto a sociedade civil traça seus projetos democráticos ou antidemocráticos. Explico: o genocídio e o padecimento negro seguem em curso e convivem nos discursos de um lado ou de outro. Com isso, definitivamente, não afirmo aqui que as duas coisas são iguais. Explicarei melhor.
Setores mais progressistas da sociedade frequentemente manifestam suas preocupações em relação ao estado de ameaça no qual se encontra a democracia brasileira. De acordo com o artigo 147 do Código Penal, o crime de Ameaça ocorre quando alguém afirma que irá causar um mal injusto ou grave à outra pessoa, ou seja, o mal a ser causado ainda não se concretizou. Segundo o dicionário a ameaça é o anúncio, aviso ou advertência de que um mal que ainda não aconteceu será, ou poderá, sob coerção, ser causado a alguém.
Mas vejamos como viver num país antidemocrático já é uma realidade presente entre determinada parcela da população brasileira que vivencia, cotidianamente, uma conjuntura de medo e terror.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública traz dois dados alarmantes para o estado da Bahia: 100% das pessoas assassinadas pela polícia do estado são negras . A maioria são homens. Os números aumentaram ainda mais em 2020 em relação aos anos anteriores: 47%. As execuções quase nunca são feitas nas áreas centrais da cidade e continuam sendo as periferias o palco do espetáculo do flagelo de corpos negros, locais onde a pena de morte e a tortura já existem. Muitos desses corpos não foram encontrados, sendo, portanto, considerados desaparecidos.
Salvador é a cidade com maior número de pessoas negras e o local em que as expressões do que foi produzido cultural e socialmente pelas pessoas africanas e afro-brasileiras encontra maior expressão. Mas é em Salvador também que encontramos os maiores números de mortos vítimas de assassinatos. A cidade é seguida por Rio de Janeiro e São Paulo nos nefastos números. É nesse caminho que o que afirma Frank Wilderson sobre o racismo nos Estados Unidos se aplica muito ao vivemos no Brasil. Dados como esses não geram comoção nacional, não geram demissões ou pedidos de desculpas e nem constrangimentos ou posturas públicas que se comprometam a dar fim a essa máquina de moer gente negra. Wilderson afirma que o genocídio da população negra funciona como uma espécie de terapia nacional. É chocante, mas em “Afropessimismo” o autor diz ainda mais: “o espetáculo da morte negra é essencial para a saúde mental do mundo”. Repetidas, banalizadas e naturalizadas, as mortes negras geram alívio em quem não é negro ao mesmo tempo que produz um discurso superficialmente comprometido e progressista com quem se diz preocupadX com as “ameaças” à democracia. Por fim, para a extrema direita, o genocídio negro é a amostra que as coisas estão no seu devido lugar e que a política de segurança pública é, surpreendentemente, bem-sucedida: a morte de pessoas negras é, inclusive, a evidência implícita disso. A banalização do genocídio negro tem outro efeito, que é a lição para quem é negre e está vivo: nossas vidas ainda não importam.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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