Coluna

Reinaldo Moraes

O covil do poeta

28 de janeiro de 2016

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Sob os olhares de Bob Dylan, Marcelo Mastroianni e um desconhecido ator mexicano, Reinaldo Moraes desfruta um local de trabalho provisório

Se na vida profissional você é “frila”, ou “autônomo”, como se diz, seu local de trabalho pode coincidir com o da sua moradia, 2 em 1, beleza. Seu posto de trabalho estará a poucos passos da sua cama, com toda a comodidade e economia que isso representa. Em compensação — negativa, claro — você não terá 13º salário, semana inglesa, férias e feriados pra ficar de papo pro ar, e nenhuma licença remunerada por motivo de doença, além de outras benesses trabalhistas herdadas do dr. Getúlio Vargas, que instituiu a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, visando dar segurança ao trabalhador urbano em suas relações com o empregador, ao mesmo tempo que instituía um sindicalismo atrelado umbilicalmente ao todo-poderoso estado. Mas esse é outro papo.

Bem verdade, que, hoje em dia, em face da cada vez mais disseminada terceirização, o trabalhador não “celetizado” tem que partilhar de todos os perrengues impostos à força de trabalho regular e “presencial”, sem nenhuma daquelas vantagens. E dá-lhe cartão de ponto e locais de trabalho bem distantes da cama, rotinas pré-estabelecidas e hierarquias massacrantes. Pra não falar no cafezinho sofrível da firma, tomado em desconfortáveis copinhos de plástico fino e mole que queimam os dedos, e da usual tosquêra do papel higiênico do banheiro do escritório, flagelo dos fiofós mais sensíveis.

Agora, trabalhar em casa pode ser complicado, se você não mora sozinho e não dispõe de um aposento imune a invasões constantes de gente — filhos e cônjuge, principalmente — com demandas variadas, em geral envolvendo dinheiro, afeto (sexo incluso) e uma forcinha pra resolver todo tipo de problema, de uma descarga que disparou a uma conta vencida que só pode ser paga no caixa do banco, passando pelo leva e traz de filhos em meio ao trânsito psicotizante de uma cidade como São Paulo. Prum escritor, uma tal situação pode ser nada menos que infernal, donde a necessidade de manter um mocó em outra banda pra se isolar da humanidade circundante, a mesma, paradoxalmente, que fornece os modelos básicos pros seus personagens, reais ou fictícios. Um local, enfim, pra chamar de “escritório”, com estante de livros, mesa, cadeira, computador, sofá pra sonecas e leituras, algum banheiro próximo e, se possível, uma geladeira e um dispositivo pra fazer café.

Já tive escritórios de todo tipo, um quarto numa “república” de amigos, uma edícula numa casa de uma família em dificuldades financeiras, um compartimento vago no escritório de outros profissionais — um advogado e um engenheiro —, e até o atual casebre na roça que partilho com amigos, a 3 horas de carro de São Paulo. Passo lá uma semana por mês, que equivale a duas semanas de trabalho no quartinho que chamamos de escritório lá em casa.

Algumas dessas bases literárias são provisórias, como hotéis, pousadas e casas de recreação emprestadas por amigos, sempre fora de temporada. Puxei esse assuntinho porque, justamente, acabo de usufruir de 15 dias altamente inspiradores no apartamento de um amigo que foi viajar com a namorada e me cedeu seu confortável tugúrio, num bairro antigo aqui de São Paulo mesmo, a 20 minutos de caminhada da minha casa. Não sei se devo dizer o nome do meu amigo poeta. Melhor não. O cara é discreto e não gostaria de ver sua intimidade residencial exibida assim em público, numa coluna de jornal eletrônico. Digo apenas que esse amigo é essencialmente um poeta que respira e transpira poesia 24 horas por dia, embora já tenha escrito um ótimo romance, um livro de contos e pelo menos uma coletânea de crônicas pinçadas entre as que ele publica quinzenalmente num importante jornal paulista. Fora isso, ainda dá cursos livres de redação criativa e de literatura em instituições culturais, mó de levantar um dindim extra pra viver.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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