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Duvido que você duvide de que o Luís Fernando Veríssimo é um dos maiores cronistas que já deram as caras na imprensa brasileira, ambiente em que vicejou como em nenhum outro lugar essa forma literária peculiar, a crônica. Assemelhada aparentemente ao artigo opinativo, e ao ensaio que percorre com inteligência e erudição os mais variados temas sem necessariamente defender teses definitivas, e ao memorialismo em pílulas, e também ao conto, território por excelência da mais desbragada ficção, a crônica se distancia ontologicamente de todas essas formas de texto autoral acolhidas por jornais e revistas. Disse o Veríssimo, num bate-papo recente promovido pela Folha de S. Paulo sobre esse genêro literário, que “crônica é tudo aquilo que você chamar de crônica.”
É uma boa frase do saboroso cronista gaúcho, a ecoar outra que li em tempos imemoriais, segundo a qual romance é tudo aquilo que tiver a palavra “romance” escrita debaixo do título. Tanto pode ser o “Guerra e paz,” daquele russo que sempre aparece com longas e proféticas barbas brancas nas fotos da velhice dele, quanto o livro que o escritor pirado de “O iluminado” está escrevendo num hotel de montanha vazio e ilhado por uma borrasca, na companhia só da mulher e do filho paranormal. Ao longo de centenas de páginas, Jack Torrance, o personagem do best-seller do Stephen King, filmado por Stanley Kubrick, interpretado na tela por outro Jack, o Nicholson, escreve uma única frase repetida milhares de vezes: “All work and no play makes Jack a dull boy,” que eu traduziria por “Só trabalho, sem diversão, faz de Jack um panaca.”
Cá entre nós, se o King lançar um livro de mil páginas recheadas apenas com essa frase, e com uma capa chocante de algum artista gráfico famoso, aposto como vai ser um dos maiores best-sellers de sua carreira. Há de ser o presente-piada do ano, ou da década, que as esposas vão dar aos maridos workaholics e os funcionários de burocracias entediantes aos seus chefes e patrões. (Dear Stephen, se você encampar minha idéia, quero 15% sobre os seus royalties, ok?)
Volto, entretanto, à crônica enquanto gênero literário, que talvez seja uma verdadeira jaboticaba cultural, ou seja, um formato quase autóctone, encontradiço em sua plenitude artística apenas entre nós. Afinal, que outro país tem um time de cronistas literatos como Rubem Braga (o rei inconteste dessa corte), Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, e mais um Antônio Maria daqui, um João do Rio dali, e até o parnasiano Olavo Bilac, um pouco menos pomposo e rebarbatrivo como cronista de jornal do que como poeta. Isso, pra falar só dos mortos. Dos vivos, além do Veríssimo, citaria Mário Prata, Matthew Shirts e Xico Sá, entre os da minha geração, e Fabrício Corsaletti, Gregório Duvivier, Tati Bernardi e Antônio Prata, filho do Mário, entre os mais jovens. Na verdade, seria preferível não citar alguns desses cronistas, visto que vários deles são meus amigos, e pega mal ficar incensando amigo numa crônica. Mas, paciência, agora já foi.
Citei aí em cima o Bilac, de quem juro que não fui amigo, por conta de uma das crônicas dele de que mais gosto, intitulada “À noite…”, cujo tema difuso é um fenômeno neuropoético que está a me acometer justo neste exato instante: “Já alguém disse que uma só noite de insomnia, na solidão, dá mais experiência à gente do que cem dias vividos no torvelim das ruas, na agitação dos negócios e dos prazeres. É certamente por isso que a insomnia envelhece tanto.” Sim, deve ser por isso que me sinto um matusalém caquético, contemporâneo dessa ortografia centenária. A culpa é da insomnia, sem circunflexo, ao menos na velha edição escaneada das crônicas bilaquianas que pesquei na internet.
Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.
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