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Reinaldo Moraes

O pau-ferro de Jequié

18 de março de 2016

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Uma mulher abraçada a uma árvore ao som de "Vapor barato" e meu último encontro com o poeta baiano de pai sírio, Waly Salomão

A mulher abraça uma árvore no parque Trianon, na avenida Paulista, onde costumo dar umas caminhadas. A mulher, de seus 60 e tantos anos, não sei como se chama. Nunca a vi, nem mais magra, mais gorda ou mais afetuosa com a natureza. A árvore é um jequitibá-branco (Cariniana estrellensis), pelo que me informa uma plaquinha que algum didático botânico providenciou ao pé do majestoso vegetal lenhoso, como diria um Ruy Barbosa da vida. Estaria aquela mulher abraçando a si mesma, representada pelo jequitibá-branco? Ou seria uma tentativa de aurir a seiva do rijo lenho? (Como diria agora o velho Camões.)

Nesse momento, a cena da mulher abraçando a árvore ganha um fundo musical que sai do celular na mão de alguém num grupo de alunos do colégio Dante Alighieri, que fica nos fundos do Trianon. É a Gal Costa cantando “Vapor barato”, música de Jards Macalé e letra do Waly Salomão, um clássico do cancioneiro moderno de inspiração tropicalista. A canção, lançada em 1971, no disco “Gal: Fa-Tal, a Todo Vapor,” não saía das vitrolas de todos os cabeludos da década de 1970, e agora, pelo visto e ouvido, brota também das engenhocas digitais mais da-hora de uma garotada cujos pais talvez fossem bebês, ou nem tivessem nascido, naquele ano. A letra de “Vapor barato” do genial poeta baiano já começa arrasando:

Oh, sim, estou tão cansado
Mas não pra dizer que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas, meu casaco de general
Cheio de anéis, eu vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
E não me importa, Honey
Baby, baby, honey baby…

Um sujeito de calças vermelhas, casaco de general e dedos cheios de anéis só podia ser um hippie não muito mais velho que aqueles meninos e garotas ali no parque, nos anos 70. E “tomar aquele velho navio” era um claro apelo à fuga de uma realidade difícil implantada a ferro, fogo e choques elétricos pela ditadura militar no Brasil, então em seu ápice de truculência e autoritarismo coercitivo. Pé na estrada, sartá de banda, dar o pinote, rumo a plagas mais amenas, eis a aspiração de não poucos jovens piraditos da época. E não era preciso “muito dinheiro” pra sair pelo mundo. Com a devida manha se pegava carona num vapor barato pra algum país livre e democrático — da Europa, por exemplo.

Na época era relativamente fácil entrar de gaiato na Inglaterra ou na França, por exemplo, e lá passar uns tempos vivendo de bicos, longe do risco de encarar um pau-de-arara da repressão por conta de algum tipo de ativismo político, estético ou comportamental. Um reles baseado já podia te jogar numa masmorra do antigo Carandiru, como aconteceu em 1970 com o Waly Salomão, em São Paulo. Pra sorte dele e nossa, nos meses que passou encarcerado, Waly arrumou forças e serenidade pra faturar o mais iluminado texto miscelânico daquele período cá no Patropi, o “Me segura que eu vou dar um troço”, lançado em 1972, obra que eu viria a ler em êxtase poético e, de certa maneira, também político na segunda metade daquela década barra-lúcifer, no dizer de outros baianos, os Novos, na voz da antiga Baby Consuelo.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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