Coluna

Reinaldo Moraes

Agora é que são…elas? Ou eles?

22 de abril de 2016

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Civilização é você poder dar umas bandas à vontade pelo wild side da sua cidade, usando e abusando da sua libido como bem entender

Dia de luz, festa de sol, e o barquinho a deslizar, no macio azul do mar…

A luz e o sol batem com o cenário desenhado pelo sambinha jazzístico de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. Meu macio azul do mar, porém, é o asfalto preto da rodovia Ayrton Senna, macio de rodar, devo reconhecer, malgrado os vinte paus e quebradinhos que deverei pagar pra transitar por ele, ida e volta, no meu barquinho de quatro rodas, velhusco, fora de linha, mas ainda operacional. E com um aparelhinho de som que toca cd’s e se conecta a iPhones, smartphones, pen drives e demais badulaques digitais, no qual posso ouvir “O barquinho,” clássico da bossa-nova.

Na verdade, nem sei direito mexer no som do carro. Quem opera a trilha musical da viagem é uma das minhas filhas, a de 19 anos, que deu de se ligar em música brasileira e internacional de 50, 60 anos atrás. Na playlist do iPhone dela, além de muito samba, bossa nova e tropicália, figuram velharias roqueiras que embalaram minha juventude do final dos anos 50 em diante. Elvis (“Are you lonesome tonight”), Celly Campello (“Banho de lua”), Beatles (“I wanna hold your hand”), Stones (“Satisfaction,” claro), o básico. Talvez a menina esteja fazendo uma homenagem ao paizão demodê, mas o fato é que eu já ando com calo no ouvido de tanto ter ouvido essas músicas no passado. Quando a Dora despeja um “Stairway to heaven” nos alto-falantes, rogo-lhe, com o máximo de delicadeza, que ouça suas músicas nos fones de ouvido. Ela comenta com sarcasmo minha ojeriza a ouvir música, que só tem aumentado nos últimos tempos. Diz que estou desenvolvendo um tipo de melofobia senil, no que deve ter toda razão. Lembro, todavia, da Björk dizendo, há uns 10 ou 15 anos, que o rock tinha virado piada velha. Minha filha, que não é lesa, rebate: É piada velha, but I like it.

Ok, eu também gosto, só que não dirigindo, como fazia antes, enfiando sem parar no toca-fitas do carro os cassettes de Stones, Dylans, Beatles, Kinks, que dividiam o espaço sonoro do carro com Caetano, Chico, Gil, Gal, Ellis, João Gilberto, Paulinho da Viola, e por aí afora. Eu não rodava dois quarteirões sem ouvir música, de fita ou rádio. Agora, prefiro mil vezes o silêncio ou o que for mais próximo disso. Gosto mais é da música do vento rasgando caminho pela fresta de 4 dedos que deixo aberta na janela à minha esquerda. Meu cérebro se impacienta com a diversidade de ritmos, melodias e mensagens poéticas que se sucedem num CD ou na playlist de um dispositivo digital. Sou jogado emocionalmente de cá pra lá, duma balada romântica pruma pauleira psicotizante, com suma arbitrariedade. Help! – como acabou de bramir o John Lennon de 1964 desde o iPhone da minha querida filhota.

Há outras pessoas no carro que querem ouvir música, então, sou voto vencido. Minha filha diz que vai botar agora uma sucessão de rocks com temática gay, que um amigo dela lhe enviou. Temática gay? Penso em perguntar à guria, que cursa o segundo ano de Letras, se ela já ouviu falar em cacófato, mas logo soam os primeiros acordes de “Get back”, na voz do McCartney. Então, vamos lá. A letra começa mencionando um tal de Jo Jo que sai do Arizona pra ir à Califórnia queimar fumo. O lance gay aparece nos versos seguintes: “Sweet Loretta Martin thought she was a woman / But she was another man / All the girls around her say she’s got it comin’ / But she gets it while she can”. A doce Loretta achava que era mulher, mas era um homem como outro qualquer. Daí… bom, daí é difícil traduzir. Tem um duplo sentido aí nesse got it comin’ que tem a ver com o gozo sexual, ao mesmo tempo que se refere a qualquer coisa que está pra acontecer, provavelmente meio barra pesada .

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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