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Não sei se você já encontrou no mar ou na praia a clássica garrafa com tampa de rolha e um papelucho enrolado lá dentro. Pois eu acabo de encontrar, mas em terra firme, não banhada pelo mar. Foi hoje de manhã, durante minha caminhada quase diária no parque do Ibirapuera, que fica perto de casa. Pra evitar uma alameda apinhada de joggers, ciclistas, skatistas (não poucos rolando e digitando o smartphone), passeadores de cachorro, caminhantes como eu, vários cadeirantes e hordas de destemidos caçadores de Pokémons com seus smarts em punho – aliás, de onde vem esse ridículo acento agudo, se o bagulho é coreano? -, me esgueirei logo que possível por uma aleia com escassos casais de namorados pelo gramado em volta, um deles de garotos gays, mães e babás com crianças, e não muito mais que isso de gente. Se havia algo comum àquelas pessoas todas eram o smartphone na mão de quase todo mundo. “WhatsAppeando”, caçando os absurdos pokemons (sem acento, plís!) e pikachus e pikapaus virtuais pela paisagem, ou vendo pornografia ou fazendo sei lá o quê, o aparelhinho era uma extensão natural daqueles corpos todos. Não vi nenhum bebê e nenhum cachorro cutucando um smartphone. Ainda.
Tempos atrás, você via pessoas sozinhas por aí com um livro ou gibi na mão em parques, cafés, metrô, trem, e outros lugares públicos em que a leitura é possível. Depois, a leitura foi sendo substituída por fones de ouvido plugados em MP3, iPods e outras caixinhas mágicas de música. Hoje, a telinha do smartphone, repleta de mensagens pessoais e de um turbilhão de imagens e informações e passatempos malucos está ganhando da música de lavada. Tempos modernos, como diria Charlie Chaplin. Irritantemente modernos, diria eu.
Mas, ok, beleza. Com menos gente no caminho, eu podia me dedicar à flânerie com dignidade, marchando no ritmo que mais aprazia às minhas pernas e deixando a mente correr solta, como um cachorro fora do laço, a exemplo do que alguns frequentadores fazem com seus animais nas áreas mais ermas do parque. Minha mente corria lá na frente, chegando até a alçar uns voos curtos e aleatórios, quando a cabeça que trago sobre o meu pescoço – pem! – acertou algo duro que pendia de um cadarço do galho de uma árvore. Só percebi o que era depois de dar a testada no objeto, felizmente sem consequências além do susto e de uma leve dorzinha.
O objeto era a tal garrafa com uma mensagem dentro. O texto estava escrito a mão com uma esferográfica azul, numa letra regular, feminina me pareceu, se bem que aplicar noções de gênero à caligrafia não parece boa ideia, nesses tempos em que os estereótipos de gêneros vão caindo, um por um, em todas as áreas da atividade humana. Não sei quem escreveu aquela mensagem, mas acredito que foi mesmo uma mulher, e culta, como você poderá ver. O rolinho de papel parecia uma folha arrancada ao léu de um diário elucubrativo. Também não tenho a menor ideia dos motivos que levaram a suposta autora, ou seja lá quem for, à ideia de pendurar a garrafa, com a mensagem dentro, no galho da árvore, lá no Ibirapuera.
Como já contei uma história de uma mulher na crônica passada, a boa política temática que rege o fazer do cronista recomendaria não fazer a mesma coisa na crônica seguinte. Mas não resisto. Voilà:
Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.
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