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A fotografia é uma técnica que tem potencialidades especiais: é capaz de suspender o tempo e ainda trapacear com a nossa noção encadeada e evolutiva de história. Com sua mágica, ela interrompe a corrida do dia a dia, e faz o milagre de tornar perene o que é fugidio ou, muitas vezes, ocasional. O efeito é de eternidade diante do que é da ordem do mero acaso e circunstância.
Mas por vezes ocorre justamente o oposto: fotos trazem de volta à vida o que parece morto e para sempre enterrado. Por meio delas é possível redescobrir mundos que pareciam fadados a permanecer no passado, ou conviver com personagens que não eram mais que meros desconhecidos. Aí estão eles, suspensos num abraço, num sorriso sem jeito, encontrados no meio de arquiteturas hoje destruídas, ou desvendados por costumes estranhos.
Pois hoje gostaria de tratar, nesta coluna, de uma exposição e de um livro: “Last Folio – Preservando memórias”. A mostra, aberta na Unibes Cultural, em São Paulo, por dois meses (apenas), traz as fotos de Yuri Dojc e os vídeos de Katya Krausova. Ambos nasceram na antiga Tchecoslováquia, mas deixaram seu país de origem no ano de 1968, por motivos políticos. Julgavam que para lá não voltariam tão cedo, mas foram fisgados pelas imagens e pelos relatos de memória.
As fotos de Dojc, que organizam a exposição, contam um pouco de sua própria história. Filho de uma família perseguida pelo nazismo, ele só passou a refletir sobre parte dessa sina, que era também sua, com a morte do pai. Por uma dessas estranhas trapaças que a vida prega, em janeiro de 1997, no enterro de seu pai na Eslováquia, ele foi apresentado a Ruzena Vajnorska, uma das poucas sobreviventes das inúmeras vítimas que foram levadas a Auschwitz no ano de 1942. Em meio a um ritual de luto, a sobrevivente falou de morte, mas de vida também, e escancarou um mundo que o fotógrafo pouco conhecia: a realidade da Shoah.
A partir de então, Dojc passou a recuperar – ele e sua câmara – um caminho que lhe era até então estranho, mas que se revelaria, aos poucos, muito familiar. Se não há jeito de fazer a história voltar atrás, era possível, porém, visitar uma série de resquícios empoeirados que, teimosamente, continuavam a resistir à destruição dos homens. Boa parte das posses e bens dessas populações, covardemente assassinadas pelo nazismo, foram por certo roubados. Mas pequenos segredos permaneceram intactos; isolados da ação subversiva do tempo. Foi assim que o fotógrafo transformou pequenos detalhes em guias de viagem, e passou a recolher as sobras dessa pouco conhecida Eslováquia. Por lá habitava uma comunidade judaica secular e enraizada, que desapareceu da noite para o dia. Relatos de época contam como a população local acostumou-se a ir dormir com os vizinhos em casa, cuidando rotineiramente de seus afazeres, e acordar sem parte deles, levados subitamente pelo terremoto nazista, em sua sanha de apagar qualquer rastro da memória judaica.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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