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Cá estou mais uma vez escrevendo sobre o samba. Prometo não me alongar demais. Não trago verdades inquestionáveis, trago reflexões. E reflexões, a meu ver, são ideias e conexões que surgem na nossa cabeça possibilitando uma leitura sobre alguma coisa, podendo, inclusive, ser modificada. Acredito mais em reflexões que estão em construção, assim como este texto, assim como essa percepção que vou propor a seguir.
Peço licença para os meus ancestrais negros que construíram e cuidaram do nosso país junto dos povos indígenas e brancos que não são inimigos das nossas águas. E nem da nossa gente.
Dia desses, peguei o trem Santa Cruz na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e decidi que viajaria no primeiro vagão. Chegando próximo dos primeiros, notei uma batucada: era um samba no trem. Sim, uma roda de samba que acontece dentro de um vagão de trem . Não pensei duas vezes: aquele era o meu vagão e, imediatamente, me instalei pertinho do tantam, porque quem é capaz de se permitir ouvir o som de um tantam, pode ouvir o som de qualquer coração por esse mundo. Estou aprendendo!
Entre músicas de Elza Soares, Clementina de Jesus, Jorge Aragão, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Raça Negra, entre outros, percebi o samba de outro modo. Ali, eram todos trabalhadores. Alguns que tocavam ou puxavam uma música tinham os pés sujos de cimento e tinta. Joelhos ralados, calos nas mãos, mochilas pesadas. Um vendedor de cerveja colocou o seu isopor estrategicamente ao lado da roda, afinal, a cerveja é o combustível para a festa acontecer. Os corpos negros cansados que entravam no vagão, logo se transformavam com aquela energia: pediam um latão e, entre um gole e outro, fechavam os olhos cantarolando: “pra ter as duas paixões não tem jeito / só tendo dois corações no meu peito / mas eu só tenho um / pra suportar esse amor incomum”. Aquele pagodinho que quando toca, muitas mãos erguem o copo de cerveja e sentem, na mesma sintonia, a dor de um amor. Ou de vários.
O trem começa a andar e a batucada fica ainda mais animada. Lembro, imediatamente, do verso do Rincon Sapiência “Batemos tambores, eles, panelas”. Essa frase é uma imagem. Quando leio, ouço ou lembro, vem o Mestre TC na cabeça quando ele faz uma leitura sobre a importância do tambor na vida dele e também como o tambor é um meio de comunicação. “A comunicação africana tinha poderes porque ela também bota a gente para navegar em outros sentidos. Transcende, te tira do teu lugar e te bota em comunhão com o universo. E a pessoa sabe porque dança e porque toca.”
Yasmin Thaynáé cineasta, diretora e fundadora da Afroflix, curadora da Flupp (Festa Literária das Periferias) e pesquisadora de audiovisual no ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). Dirigiu, nos últimos meses, “Kbela, o filme”, uma experiência sobre ser mulher e tornar-se negra, “Batalhas”, sobre a primeira vez que teve um espetáculo de funk no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a série Afrotranscendence. Para segui-la no Twitter: @yasmin_thayna
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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