Temas
Compartilhe
Meu avô era um velhinho de óculos bem espessos e sotaque ainda mais, apesar de ter vivido mais de 60 anos no Brasil. Henrique, era o nome dele. Tinha uma lojinha de roupas na Fradique Coutinho, aberta quando Pinheiros era ainda um bairro de imigrantes em São Paulo. Foi lá, nos fundos, numa edícula úmida, que meu pai cresceu. Lá também, na lojinha, passei os sábados da minha infância. No sotaque do meu avô se insinuava uma história cheia de aventuras, mas eu era um garoto afobado, sem muito tempo para escutar histórias – havia tantos desenhos animados para assistir. E, além do que, ele não parecia gostar muito de rememorar sua vida anterior, do outro lado do Atlântico.
Nessa vida anterior, meu avô não se chamava Henrique: chamava-se Chaskiel. Chaskiel Hersz Burgierman. Judeu nascido na Polônia, em 1906, único menino entre quatro irmãs. Na mitologia familiar dos Burgierman, coube a ele o papel de rebelde, de garoto arisco, teimoso, determinado. Uma vez, aos 12 anos, a mãe lhe deu uma bronca que ele achou injusta. Fugiu de casa e só foi encontrado dias depois, por sorte, por uns parentes, a 200 quilômetros de lá.
Uma década depois disso, em 1929, quando tinha 23 anos, ele empreendeu uma viagem muito maior: 10 mil quilômetros, até o Rio de Janeiro, onde, segundo ele, pela primeira vez suou sem estar trabalhando. O que o fez migrar para tão longe, antes mesmo de Hitler subir ao poder na vizinha Alemanha, sempre foi um pouco misterioso para mim. Meu avô tinha tido uns problemas com a polícia, por se envolver em manifestações comunistas, e se incomodava com a hostilidade aberta com a qual os judeus eram tratados nas ruas. Mas, ainda assim, o que faz um rapaz polonês embarcar num navio holandês e viajar semanas rumo ao completo desconhecido? Que impulso foi esse que o levou a deixar as quatro irmãs para trás e se aventurar sem passagem de volta num país estranho cuja língua ele nunca aprenderia completamente?
O fato é que esse impulso salvou sua vida. Os Burgierman foram exterminados da Polônia nos anos 1930. Três de suas irmãs morreram nos campos, com suas famílias inteiras. Só uma escapou, Regina, que fugiu para o leste com uma bebê de dois meses no colo. Só voltou da União Soviética para a Polônia, viúva e com o bebê, depois que a guerra acabou.
Pois foi graças a essa bebê – agora com 76 anos – que vim a conhecer vários detalhes dessa história. O nome dela é Ludwika e, no ano passado, ela nos encontrou no Facebook e veio nos visitar em São Paulo. Veio com o marido Heinryk, com o filho Pawel e mais meia dúzia de parentes – netos, nora, prima – numa viagem de férias.
Denis R. Burgiermané jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Navegue por temas