Coluna

Lilia Schwarcz

É hora de falar sobre escravidão mercantil e moderna

30 de julho de 2018

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Só se efetiva uma lei quando há vontade política, e a nossa, quando se trata de cercear o trabalho escravo, é sempre fraca e dada a todo tipo de oscilação.

Para quem pensa que escravidão é tema do passado, recomendo que passe os olhos na pesquisa realizada pela Walk Free Foundation, cujos resultados foram divulgados no dia 19 de julho de 2018. O conceito de “escravidão moderna” diz respeito a pessoas forçadas a permanecer no trabalho seja por dívida, seja pela falta de vínculos empregatícios ou pela ausência de direitos trabalhistas garantidos. Regimes coercitivos, condições degradantes e jornadas exaustivas também fazem parte da definição.

A pesquisa, realizada internacionalmente, conferiu a nota mais alta para a Holanda; única nação a receber “A” como avaliação. Com o pior conceito aparece a Coreia do Norte, onde a estimativa é que uma a cada dez pessoas viva em situação de escravidão, sendo a maioria delas forçada a trabalhar para o próprio Estado.

Segundo o relatório, contextos de crise e de instabilidade contribuem para perpetuar tal panorama: migrações forçadas, regimes ditatoriais e repressivos, guerras e conflitos internos, e processos de discriminação motivados por questões raciais, étnicas ou religiosas. Segundo a mesma pesquisa, empresas de confecção de roupas e de equipamentos eletrônicos, serviços realizados em fazendas de gado e cana de açúcar fazem parte do leque de estabelecimentos que mais recorrem à mão de obra escrava. E o resultado geral é devastador: no ano de 2016, 40,3 milhões de pessoas se encaixaram em alguma forma de “escravidão moderna”, de acordo com o estudo feito em parceria com a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a OIM (Organização Internacional para as Migrações).

O Brasil aparece em 20º lugar, contando com 369 mil “escravos modernos” – numa média de quase dois escravos a cada 1.000 habitantes. Se a Organização elogia o texto que o governo brasileiro produziu, ainda em 2005, juntando-se ao esforço de erradicar essa forma de trabalho compulsório, critica severamente a portaria de 13 de outubro de 2017 , que mudou a definição de trabalho escravo, com o objetivo de agradar a bancada ruralista — a maior do atual Congresso. O então ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira (PTB), não só publicou um texto de lei que dificultava a punição da exploração humana como permitiu a vertiginosa queda na fiscalização desses casos: apenas no final do ano de 2017 o governo de Michel Temer dignou-se a protocolarmente realizar 18 ações com esse fim, o que corresponde a 15% da média de 2016, e a apenas 12% daquela de 2015.

Além do mais, e coerente com a política de usurpar direitos sociais dos brasileiros, o atual governo tentou dificultar a divulgação da, assim chamada, “lista suja”, composta pelas empresas acusadas de utilizar trabalho escravo. O nome, convenhamos, não é dos melhores, mas o objetivo, sim. Tal documento foi criado em 2003, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, e acabou sendo considerado uma referência internacional.

Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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