Coluna

Lilia Schwarcz

Águas de março ou o assassinato de muitos e muitas Marielles

26 de março de 2018

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As estatísticas e os casos recorrentes de violência expressam o racismo e a desigualdade estrutural brasileiras, que com o tempo parecem sempre cair no esquecimento

No dia 13 de março, uma terça-feira, encerrei minha última aula sobre “A fotografia nas Ciências Sociais”, no Instituto Moreira Salles em São Paulo, e resolvi caminhar um pouco pela Avenida Paulista. Vinha meio absorta, quando me deparei com uma cena que seria corriqueira não fosse o grau de violência nela presente. Já eram nove da noite, mas ninguém prestava muita atenção a uma situação que passava por “normal” para as centenas de pessoas que trafegavam pelo local. Pelo jeito, batidas policiais, com todos os seus requintes de humilhação, já não assustam ou incomodam a população: fazem parte da paisagem.

Eu (e uma série de pessoas que passavam pela mesma calçada e na mesma hora) não fui parada pela polícia. Já dois rapazes negros, de bermudas e bonés, acabaram encostados na parte dos fundos de uma banca de jornal, tiveram que tirar seus chapéus, curvar os corpos, olhar para baixo, mostrar documentos e passaram a ser revistados. Claro, dirão alguns, que não tenho como ter certeza sobre o que ocorria naquela circunstância. Mas não é segredo para ninguém como a absoluta maioria das batidas militares tem por alvo a população negra.  Danada é a realidade que faz com que nos habituemos a naturalizar costumes perversos como esse, apenas acionando a capacidade protetora que temos de olhar e não ver.

Assisti a uma cena semelhante numa praça em frente à minha casa, num sábado de manhã. Dois garotos negros estavam descansando ao sol e distraiam-se com a criançada que brincava por lá. De repente, em um minuto, eles se viram circundados por sete motos da polícia. De nada adiantou o depoimento que muitos de nós oferecemos. Naquela situação, eles não passavam de estatísticas e elas valiam mais do que qualquer testemunho. Vivemos em guetos, mas ninguém “lembrou de avisar”. 

Também não foram poucas as vezes que ouvi mães de rapazes negros me contarem que, sempre que seus filhos saem de casa, elas rezam para que voltem, e com vida. As estatísticas têm lhes dado razão. Segundo o relatório do Ipea, os indicadores que cobrem o período de 1993 a 2007 mostram que, a despeito do aumento geral da expectativa de vida no Brasil, a população branca vive bem mais do que a negra. Em 2007 esses percentuais alcançaram 13,2% e 9,5%, respectivamente. Ou seja, até o aumento geral da expectativa de vida é socialmente desigual entre os brasileiros.

A pesquisa mostra ainda que homens jovens negros morrem antes dos demais, por conta do menor acesso aos serviços médicos. Vivem menos, também, porque têm menos condições de terminar a escola e assim buscar outras formas de inserção no mercado de trabalho. Mas a maior razão é sem dúvida a violência a que estão sujeitos. Enquanto em 2012 a taxa de homicídio para os jovens brancos foi de 29,9 (a cada 100 mil habitantes) – praticamente a mesma da população total – a de jovens negros chegou a 82,3. Eles correspondem a 93% das vítimas de violência letal e têm, portanto, em média 2,5 vezes mais riscos de morrer. Na região Nordeste, onde as taxas de homicídio são as mais altas do país, a média passa para 5.

Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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