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Há pouco mais de um mês recebi um convite para participar de uma banca de defesa de dissertação de mestrado. O título “Elza Soares: gênero e relações étnico-raciais na música popular brasileira e no ensino de história” e o fato da autora, Juliana Videira, ser da Unicamp, no Mestrado Profissional em Ensino de História remeteram-me às mudanças que mulheres negras temos promovido no Brasil. Guiaram-me também ao meu passado como estudante de doutorado da mesma universidade. Em 2006, na linha de pesquisa de história social da cultura, referência mundial em estudos sobre a escravidão no Brasil e nas Américas, eu fui a única estudante negra aprovada no processo seletivo.
A essa altura, tendo vindo de centros de excelência da produção acadêmica (UFRJ e UFF) ser a única não era novidade. Entretanto, em pouco tempo descobri o quanto a experiência de estudar em uma instituição pública de elite, enraizada no interior de São Paulo, marcaria a minha vida e a construção de minha identidade profissional. Nos anos em que por lá estive, foram muitos os casos de racismo, experimentados com outros colegas negros que começavam assim como eu a chegar na pós-graduação. Entre tantos, lembro do dia em que apresentei para turma meu projeto de pesquisa – ritual obrigatório na linha de pesquisa à qual pertencia.
Os comentários de mestrandos e doutorandos brancos sobre como o texto “estava mal escrito e poderia melhorar” e como “estudar concursos de beleza negra no pós-abolição” era algo “fútil e irrelevante” fizeram-me entender o abismo entre teoria e prática na história social do trabalho. Ao mesmo tempo em que referenciavam pesquisas nas premissas de Edward Thompson acerca da importância de visibilizar as experiências e o protagonismo das classes trabalhadoras, operavam, para usar uma expressão do próprio historiador inglês, na mais absoluta “miséria da teoria” para o desenvolvimento de pesquisas supostamente neutras. Histórias como essa de silenciamento e desqualificação dos modos de fazer e pensar de pessoas negras são parte do “privilégio epistêmico”. Somadas ao descaso de professores e gestores da instituição e a capacidade de reinvenção de estudantes negros, tais histórias culminaram na criação dos primeiros coletivos universitários naquele espaço, como o Negros do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas).
Inevitável rememorar esse importante e doloroso trajeto lendo as recentes notícias sobre as pichações racistas nos muros da Unicamp, onde, em 14 de março de 2012, tornei-me doutora: “Aki não é senzala. Tirem os pretos da Unicamp já” é o “abstract” das barreiras impostas a jovens negros que desbravam a carreira acadêmica no Brasil. Ao repassar esse filme, articulei estatísticas do acesso à educação superior a episódios recentes, que tenho tido a oportunidade de protagonizar como professora da UFRJ. É através deles que aprofundo a conversa sobre as relações entre ciência, lugar de fala e mulheres negras na academia, nesse tempo em que a pesquisa encontra-se seriamente ameaçada no Brasil .
Entre 2005 e 2016, cresceu de de 5,5% para 12,8% o número de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras. Tal aumento culminou na emergência de novas agendas de pesquisa. Nelas destacam-se: a importância de valorizar as trajetórias individuais e coletivas, as subjetividades, as narrativas na primeira pessoa. Isso ficou evidente na disciplina Educação, Gênero e Estudos Pós-coloniais, que ofertei no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ no primeiro semestre de 2018 e que contou com a participação de 50 estudantes de mestrado e doutorado em busca de ferramentas para construção de narrativas acadêmicas em que o espaço para o reconhecimento das subjetividades na produção científica seja assegurado. Dando um salto para o agora, insere-se nesse contexto de transformações o fato de, em um intervalo de três dias, ter tido a oportunidade de acompanhar em dois grupos distintos debates sobre o livro “O que é lugar de fala?”, da filósofa Djamila Ribeiro.
Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.
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