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No finalzinho de 2017, nos 45 minutos do segundo tempo, meu colega Flavio Gomes, grande especialista na história da escravidão e do pós-emancipação no Brasil, me enviou uma notícia que mexeu comigo. Morreu em Bauru o senhor José Aguinelo dos Santos, nascido no dia 7 de agosto de 1888, no Ceará. Ele com certeza não tinha idade para entender a grandeza do ano em que se deu o seu nascimento. Mas sua família, na época, há de ter sabido e festejado a boa nova. Desde maio, daquele ano, não havia mais escravos no Brasil.
A matéria centrava-se na falta de documentos oficiais de José Aguinelo e arbitrava uma espécie de disputa: se tivesse os registros em ordem seria ele o homem mais velho do mundo?
Da minha parte, a notícia despertou outro tipo de reflexão: como é recente a abolição da escravidão no Brasil! Vista em perspectiva, ela parece muito distante – afinal, 100 anos não é tempo que se despreze. Porém, na contagem das gerações tudo parece mais próximo. Se Aguinelo tivesse filhos eles estariam na faixa dos 80 ou 90 anos. Seus netos poderiam contar 60 ou 50 anos. Ou seja, maio de 1888 parece ter ocorrido ontem ou anteontem.
Zé Aguinelo, como era conhecido pelos amigos, morreu pobre em um asilo para velhos; segundo os registros médicos, de “causas naturais”. Infelizmente, não devem existir muitos como ele para contar a história do período conhecido como pós-abolição, quando o Brasil pretendeu esquecer do passado recente da escravidão. Naquele contexto, intelectuais, políticos e até literatos passaram a definir este sistema de trabalhos forçados como uma “falha” da nossa história, uma “mancha negra”, conforme explicou o então ministro da economia, Rui Barbosa, num duplo ato falho. Afinal, a prática da escravização era feita, na imensa maioria das vezes, por brancos. Já os afrodescendentes eram antes vítimas diletas desse sistema. Portanto, essa seria uma “mancha branca”, definitivamente, não negra.
O certo é que se a Lei Áurea, de maio de 1888, foi a mais popular do Império, acabou sendo a última. De tão atrelada à escravidão, a monarquia caiu um ano e meio depois dela, quando se dá o início da República, que surgiu alardeando modernidade, urbanidade e civilização. Fato simbólico e significativo, nesse sentido, é o hino da República criado em inícios de 1890. Hino é coisa que a gente aprende a cantar: não a refletir. Todavia, basta prestar atenção em uma de suas estrofes, para entender como se buscava negar e olvidar do passado escravocrata. Solene e sem pejas a letra proclamava: “nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país …”. Tudo isso um ano e meio após a abolição! Aí está um exemplo eloquente de como a memória é feita de lembrar, mas também de muito esquecer – e rapidamente.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
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