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Quando o Brasil ainda não era Brasil, era uma América portuguesa, viajantes que por aqui estiveram definiram os nativos locais como povos “sem”. Segundo o português Gandavo, os brasileiros seriam “povos sem F, L e R”; sem fé, lei ou rei. No entanto, e como bem mostrou o antropólogo Pierre Clastres, a falta era, na verdade, excesso: os ameríndios guardavam outras fés, outras leis e outros reis.
O que esse exemplo do século 16 revela é como, desde sempre, mantivemos o costume de desqualificar os outros, não reconhecendo suas diferenças. É isso que chamamos de preconceito, no sentido de que, com grande assiduidade, chegamos a uma conclusão antes mesmo de tentar entender o que, de fato, acontece. Por isso, o termo “sem” só existe “em relação”. Ou seja, apenas classificamos o outro como “sem”, se tivermos certeza que somos “com”, e vice-versa. No caso acima, os “com” seriam os europeus, que tinham uma fé, a católica; uma lei, sua constituição, e um só rei para toda a nação. Estava contida na linguagem uma espécie de operação de diminuir que levava a supor que o outro lado seria destituído de qualquer significado, o que era, é claro, uma grande inverdade. Nativos acreditavam nos seus xamãs, tinham as próprias leis, seguiam costumes e tecnologias locais e andavam conectados em rede.
“Com” e “sem” são, pois, termos polares: só adquirem sentido quando um está diante do outro. Além do mais, aquele que emite a adjetivação é também o que a controla. É certo que os indígenas também julgaram estranhos os povos “que vinham por mar”; tanto que os afogavam em poças de água para ver se sobreviviam ou se eram espíritos. No entanto, a história que restou, ao menos a oficial, é aquela contada pelos conquistadores, que traziam sempre uma perspectiva colonial e eurocêntrica.
Mas esse já é tema para outra coluna. O que interessa reter aqui é a comparação. Se no caso do século 16 esses eram povos “sem”, em contrapartida, num exemplo mais contemporâneo, o polêmico projeto Escola Sem Partido, a postura repete a regra normativa, mas inverte os termos. Os “sem” seriam destituídos de qualquer ideologia, enquanto os “com” abusariam dos seus valores, tentando impô-los. Além do mais, enquanto os “sem” agrupariam as pessoas que acusam, os “com” corresponderiam aos acusados. Como se vê, se existem, sim, muitos modelos diferentes, duvido que haja alguém nesse mundo destituído de qualquer pré-concepção. É isso que os ameríndios chamam de cosmologias e nós de filosofias. Já o termo “ideologia”, da maneira como tem sido usado (e abusado), vira tão somente categoria de acusação, sem qualquer conteúdo.
Mas como o objetivo desta coluna é refletir sobre o “Escola Sem Partido”, o melhor é ir direto ao documento oficial que logo na abertura traz a seguinte apresentação: “Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar”. E na sequência estabelece: “O Programa Escola sem Partido é uma proposta de lei que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio de um cartaz com o seguinte conteúdo: Deveres do professor: 1. O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias. 2. O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas. 3. O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas. 4. Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito. 5. O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. 6. O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros dentro da sala de aula.”
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
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