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“Quem vai pagar a conta?
Quem vai contar os corpos?
Quem vai catar os cacos dos corações?”
Luedji Luna. “Cabô”.
Mal começou 2019 no Brasil. A travesti Quelly da Silva teve o coração arrancado em Campinas, São Paulo. Centenas de pessoas foram soterradas e comunidades inteiras devastadas pela lama da barragem da Vale em Brumadinho, Minas Gerais, em meio a uma mortandade de animais, rios e plantações. O país registrou mais de cem feminicídios apenas no primeiro mês do ano. Dez jovens morreram no incêndio que destruiu o alojamento de jogadores da base do Flamengo. Quinze jovens foram exterminados por policiais em uma chacina com requintes de crueldade nos morros do Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres, no Rio de Janeiro. O jovem negro Pedro Henrique Gonzaga foi assassinado por estrangulamento pelo segurança Davi Ricardo Moreira Amâncio dentro do supermercado Extra, também no Rio. A lista é interminável. Impossível enumerar tanta matança.
Algumas dessas mortes foram motivo de luto nacional, outras sequer sentidas e algumas aplaudidas. Certas vidas, dependendo das circunstâncias, têm mais valor do que outras. O Brasil chorou a perda desoladora dos meninos do Flamengo, mas o fato de que quase todos eles eram negros – o que não é um detalhe insignificante – praticamente não ganhou destaque no noticiário. Suas trajetórias de talento foram exploradas à exaustão em grandes jornais, ao passo que a chacina dos meninos igualmente negros da favela, ocorrida no mesmo dia do incêndio, foi celebrada no esgoto das redes sociais como um abate de criminosos que mereciam morrer.
O confinamento dos jogadores iniciantes em contêineres irregulares, sem licença para funcionar como dormitórios, raramente foi percebido como uma discriminação praticada pelo clube, que destinou aos jovens sonhadores as piores instalações de um centro de treinamento recém-reformado e ampliado. Muita gente prestou solidariedade ao time com a hashtag #forçaFlamengo, indicando desatenção quanto à provável responsabilidade da instituição sobre a tragédia. Já a chacina na favela foi elogiada pelo governador do Rio de Janeiro como uma ação legítima da Polícia Militar.
Áurea Carolina
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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