Coluna

Giovana Xavier

‘A mulher negra que vi de perto’: #flip2019

22 de julho de 2019

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O que acontece quando em vez de ‘o tempo em que catava papel’, ‘que era empregada doméstica’ ou ‘que trabalhava na infância para ajudar a família’, a nossa autonarrativa assume novos pontos de partida?

É como se chama um lindo trabalho etnográfico da professora Nilma Lino Gomes . Doutora em antropologia, Nilma, entre outras realizações, foi representante do Conselho Nacional de Educação, ministra da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. Foi reitora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e é professora na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), onde se dedica ao trabalho com ensino, pesquisa e extensão. Seu mais novo livro, “O Movimento Negro Educador” , é leitura importante para quem quiser aprender sobre história do Brasil.

O título de Nilma que escolhi para nomear esta coluna tem contribuído para pensar de forma mais profunda sobre o protagonismo de mulheres negras no país. Através da compreensão que nossa experiência de formação intelectual se dá em bases distintas e desiguais, como evoca Conceição Evaristo com seu conceito de “grafia-desenho” , tal título força novas reflexões para além do protagonismo consecutivo de quatro anos na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). De fato, desde 2016 só crescem o interesse e o carinho do público, as filas quilométricas, a autoria negra nas l istas de livros mais vendidos . E é sempre importante ressaltar que, embora ainda haja muito o que ser feito, todas essas cenas, somadas à circulação de capital negro em Paraty, evidenciam a conquista de um poder que promove mudanças em escolas, universidades, mercado editorial, mídia — espaços fundamentais nas lutas por democracia. 

Se o protagonismo de escritoras negras na maior feira do livro da América Latina enfatiza nossa capacidade de mover o mundo, é hora de irmos além, prestando atenção em duas coisas. Quem quer e pode realmente suportar o nosso mover-se? O que acontece quando em vez de “o tempo em que catava papel”, “que era empregada doméstica” ou “que trabalhava na infância para ajudar a família”, a autonarrativa de mulheres negras assume novos pontos de partida? Amor, família, título acadêmico, carimbo no passaporte, reconhecimento profissional.

Essa inovação de se autonarrar através da humanidade relaciona-se à pergunta de Miriam Alves: “que tal olhar a história do convés em vez do porão do navio?” Pergunta esta respondida de forma brilhante pela autora em seu novo romance “Maréia” , lançado na Casa Poéticas Negras , que sob a fantástica curadoria da comunicóloga Angela Damceno foi uma das mais cheias e concorridas da Flip 2019.

Em um país no qual o presidente da República sente-se autorizado a falar absurdos de fácil contestação como o da “inexistência” de racismo e fome, além de naturalizar preconceitos de gênero e regionais, é educativo e necessário que toda sociedade pergunte-se: estamos realmente preparados para lidar com mulheres negras que iluminam as realizações em vez das misérias? O que acontece quando nos permitimos aprender com o trabalho intelectual que realizam?

Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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