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Giovana Xavier

Joga bola, jogador: um texto sobre despedidas

19 de agosto de 2019

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Como acadêmica e intelectual pública, a responsabilidade de contar a história dos outros passa pela abertura, pelo compromisso e pela escuta

Estou há duas semanas pensando como é estranho se despedir de quem a gente não conhece. Era sábado, dia 10 de agosto. Eu estava feliz. De biquíni, pensando em ir à praia. Com surfe e banho de mar, pretendia agradecer à Iemanjá pela noite gloriosa de lançamento do meu livro no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). 13 anos depois da publicação do Manifesto Anticotas e depois de 122 anos da desistência de Lima Barreto em dar continuidade ao curso de Engenharia devido ao racismo , lá estava eu.

Vestida de linho branco, no Salão Nobre do mesmo prédio em que esses dois fatos aconteceram, afirmei o seguinte: “Você pode substituir Mulheres Negras como objeto de estudo por Mulheres Negras contando sua própria história”. A emocionante apresentação de minha amiga e jornalista Flávia Oliveira sobre a importância dos títulos formais conquistados em meu trajeto assim como a plateia, lotada de crianças, estudantes, ativistas, jornalistas, editores, mães, pais, avós, tios, amigos e familiares reforçaram a certeza sobre a qual todos os dias aprendo. Meu trabalho acadêmico é missão. Um plano ancestral que me cabe executar da melhor forma.

Pensando em tudo isso, sentada no café da esquina, rolo o feed do Instagram. Deparo-me com uma fotografia de família ilustrando um texto assinado por Stéphane Marçal Sabino . Intelectual negra brilhante, estudante do curso de letras da UFRJ, a autora despedia-se, com palavras, de seu primo Gabriel Pereira Alves, um jovem de 18 anos. Estudante do terceiro ano de ensino médio e jogador de futebol do Olaria Futebol Clube, o rapaz foi atingido por uma bala — enviada pela violência do poder público — enquanto aguardava, uniformizado, o ônibus para ir à escola no dia 9 de agosto de 2019.

Como uma professora ativista dos direitos humanos para população negra e cidadã, moradora de uma cidade governada com tiro, porrada e bomba, a história de Gabriel, ocorrida na rua Conde de Bonfim, na Tijuca (próximo à minha casa), infelizmente não é surpreendente, tão pouco representa a última . Entretanto, para mim, existiu algo novo. Pela primeira vez, convivi de perto com a dor da perda de uma pessoa devido à política de extermínio do Estado brasileiro. De posse desse entendimento, a substituição da praia pelo Morro do Borel tornou-se inevitável, oportunizando-me uma das experiências mais bonitas e grandiosas que já vivenciei. Agir, pensar e sentir a partir de um jovem e do que sua vida representa para a família e sua comunidade.

Por não ser uma pessoa da favela, existe certo desconforto para narrar esta história, que é minha sem ser minha. E o importante de ser frisado, considerando meu lugar de acadêmica, é que justamente por não ser favelada possuo o poder de contá-la na primeira pessoa. De ser lida. Escutada. Poder conquistado do qual lanço mão.

Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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