Coluna

Luciana Brito

Ibejis, alegrias e juventude negra em profunda tristeza

16 de setembro de 2019

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No Brasil do século 21, os jovens negros estão mais vulneráveis, pois seus corpos, em tese livres, não são posse de ninguém senão deles próprios

Setembro é o mês dos Ibejis e minha intenção inicial era falar sobre alegrias, sobre celebração da infância, fé e da expectativa do convite do caruru. Contudo, o mês de setembro também é mês de refletir sobre suicídio, tema que pensei em não abordar. Eu queria falar de algo positivo, de alegria e cultura popular, mas eis que as próprias crianças acabaram me apontando como os temas encontrariam um ponto de diálogo que conduzisse este texto para uma reflexão sobre infância, violência, tristeza, melancolia e suicídio.

Numa certa quarta-feira, caminhava pela cidade de Cachoeira quando avistei, ainda bem cedinho, dois meninos negros caminhando pela praça. Não eram sete da manhã e já estavam felizes, sendo meninos, divertindo-se. Eu os reencontraria mais tarde na feira livre, quando os reconheci durante um longo debate entre eles e um homem mais velho, que aconselhava um terceiro garoto sobre o uso de um boné: “Rapaz, não use esse boné assim não. Os homem já não gostam da gente, você ainda usa esse boné assim, vão achar que você é ladrão”. O menino olhou assustado. Como poderia a forma de usar um boné provocar problemas com a polícia? Sua resposta, cheia de coerência e inocência foi perfeita: “Oxi, mas eu não faço nada errado?!”

Um segundo homem se juntou ao diálogo. Tirou o boné da cabeça do menino e o recolocou da forma que achava ser adequada. “Pronto, bote assim, agora sim, assim eles podem ver seu rosto e não achar que você está querendo se esconder e nem deve nada a ninguém.” O menino que eu encontrei mais cedo achou tudo um exagero, riu e disse que ninguém podia vigiá-los o tempo todo. Resolvi intervir, e disse: “Eu lhe vi mais cedo no jardim, você estava jogando pedra nos pombos.” Ele arregalou os olhos e a senhora que vendia frutas, a qual ele chamava de tia, disse: “Viu? Sempre tem alguém de olho na gente.” Portanto, eis aí o tema deste texto, que eu acredito que tenha sido apontado pelos Ibejis: a juventude negra está em risco, pois, dentre outras coisas, está se sentindo melancólica. Garantir a vida e a integridade da juventude e pensar estratégias políticas para preservá-la devem ser objeto de debate público. A tristeza está adoecendo meninas e meninos negros; também não está fácil para elas e eles viver no Brasil.

Afirmar-se inocente, parecer confiável, demonstrar o tempo todo que não fez nada de errado, tudo isso deixa a vida em constante estado de vigilância, o que gera ansiedade e estresse. Entrar num banco, ser seguido num supermercado, o pavor de ser parado numa blitz ou a possibilidade de que o contato com um policial possa terminar num episódio, no mínimo humilhante, podem gerar sentimentos de negação, culpabilização, revolta, além de medo e pânico.

Numa importante matéria publicada na Revista Muito, do jornal A Tarde, um grupo de psicólogas negras (Daiana Nascimento, Laura Augusta e Leomaria Novaes), que formam um coletivo chamado Rede Dandaras, discute como encontraram o racismo como fio condutor para entender como práticas discriminatórias e exclusão de ordem racista afetam psicologicamente pessoas negras.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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