Coluna

Marta Arretche

O Prêmio Nobel de Economia e a nota de R$ 3

24 de outubro de 2019

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As ciências sociais contribuem, sim, para a solução de problemas práticos. E há muitos pesquisadores qualificados no Brasil nessa área

Imaginemos que nosso (humano) apetite pelo barraco seja saciado nos próximos 2 anos, 11 meses, 3 semanas e 1 dia que ainda nos separam das próximas eleições gerais. Imaginemos ainda que, por efeito de saturação, a maioria do eleitorado não vote com o fígado nessa próxima oportunidade. Teremos então a chance de que o noticiário de política seja pautado por problemas reais. Se isso ocorrer, o debate poderá enfim focar as políticas, qual seja, as melhores estratégias para enfrentar os enormes desafios de uma sociedade que pretende ser civilizada. 

Então, teremos oportunidade de observar que a crença de que as ciências sociais não contribuem para a solução de problemas práticos é tão falsa quanto uma nota de R$ 3. Os laureados com o Prêmio Nobel de Economia de 2019 dedicaram sua vida acadêmica a produzir evidências empíricas sólidas para subsidiar a formulação de políticas eficazes contra a pobreza. Estiveram menos interessados em contar o número de pobres (o que é importante) e mais em entender como estes vivem, como se comportam, que escolhas fazem, com base no suposto (corretíssimo) de que esse conhecimento é condição para a efetividade daquelas políticas.

Quantas vezes você foi chantageado à mesa por recusar uma comida que crianças famintas de alguma área muito pobre estariam prontas a devorar? Se você repete essa chantagem com seus filhos, está desatualizado.

Contemporaneamente, não é a falta de alimentos que impede que os mais pobres tenham a força física necessária para realizar atividades que lhes permitam ganhar a vida com seu próprio trabalho. Os avanços (baseados na ciência) da produção alimentar reduziram substancialmente a escassez e o preço dos alimentos. Avanços tecnológicos também reduziram o esforço físico requerido dos que executam trabalhos menos qualificados. A combinação dessas duas trajetórias implica que uma dieta à base de bananas e ovos caberia no orçamento dos mais pobres e seria suficiente para evitar a desnutrição. O problema é que, assim como você e seus filhos, os mais pobres também não aceitam comer apenas bananas e ovos pelo resto da vida.

Não é a inatividade o principal problema. Os muito pobres têm uma vida econômica. Esta é feita de múltiplas atividades. Os rurais distribuem seu tempo trabalhando em sua pequena propriedade (frequentemente sob ameaça de perda). Mas produzem também como diaristas nas grandes propriedades e migram temporariamente atrás de atividades sazonais. Mulheres urbanas desempenham múltiplas tarefas em um mesmo dia. Combinam a prestação de serviços domésticos em um turno a vendas ambulantes em outro. Se assim é, nossa reforma trabalhista terá efeito zero sobre a vida econômica dos muito pobres. Não precisam ir para a informalidade para (alegadamente) melhorar de vida. Já estão nela.

Marta Arretcheé professora titular do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. Foi editora da Brazilian Political Science Review (2012 a 2018) e pró-reitora adjunta de pesquisa da USP (2016 a 2017). É graduada em ciências sociais pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), fez mestrado em ciência política e doutorado em ciências sociais pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e pós-doutorado no Departamento de Ciência Política do MIT (Massachussets Institute of Technology), nos EUA. Foi visiting fellow do Departament of Political and Social Sciences, do Instituto Universitário Europeu, em Florença. Escreve mensalmente às sextas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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