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A minha recente carreira no magistério superior significou a consolidação de anos de investimento público na minha educação, mas também, concretamente – pelo menos esperava-se –, a tal estabilidade que famílias negras e brancas almejam num país cheio de revezes econômicos. Quando se é de classe popular, ser funcionário público pode te colocar num interessante lugar de ser a única pessoa com contracheque numa comunidade de diversas pessoas. Desde o pós-abolição, populações negras brasileiras estão sujeitas ao trabalho informal , sem carteira assinada e sem garantias, engendradas numa sociedade em que é preciso comprovar renda para tudo: para abrir conta no banco, para fazer um cartão de crédito, para fazer um contrato de aluguel, para tomar empréstimo. Assim, definitivamente, não dá para se tornar uma “zebra gorda” quando se tem um contracheque, digamos, coletivo. Por isso, o magistério, ofício a que se chega por meio de anos de estudo, tem sido o caminho escolhido, ou possível, de diversas jovens negras em busca de reconhecimento intelectual, mas, sobretudo, emprego formal qualificado.
No país do desemprego, justamente agora, o ensino à distância se expande e tem suas regras de implementação “flexibilizadas” – uma medida do governo Temer, que afrouxou o controle de qualidade dessas “empresas da educação”. Dados do MEC afirmam que entre 2017 e 2018 o número de vagas oferecidas em cursos a distância cresceu 50,7% . A maioria das vagas oferecidas é no curso de pedagogia, cujos alunos se concentram no período noturno. Contudo, o sonho de se tornar professora a baixo custo – já que o valor do curso no ensino à distância chega às vezes a ser 50% menor que o presencial – muitas vezes é interrompido no meio do caminho. É também na educação à distância que está a maior taxa de desistência. Alguém pode perguntar: mas como desistem do curso que, além de ser mais barato, pode se adequar ao horário mais conveniente da estudante? Entendo as razões da evasão muito bem, pois na minha prática docente e da maioria das colegas que conheço, que é presencial e cotidiana, todos os dias disputamos a permanência das nossas alunas e alunos com uma realidade que os expulsa da universidade. Isso é feito com muita conversa e convencimento, de pedagogia do afeto…
Obviamente, esse estudante que busca o ensino à distância tem gênero, classe social e raça: são, na sua maioria, mulheres negras e pobres que buscam cursos de licenciatura e, por escolha ou por acreditar que isso é o que lhes é possível, buscam se tornar professoras. Assim, sob a justificativa da inclusão , o ensino à distância vende uma ilusão que custa caro, mas gera fortunas aos grupos educacionais que o promovem.
O que estas mulheres estão fazendo não é novo, ao contrário. A busca por reconhecimento intelectual, respeitabilidade social e estabilidade econômica, para promover mobilidade social, é uma estratégia que sempre foi utilizada pelas famílias negras; já falei isso em um dos meus textos. No caso específico do magistério, podemos perceber como, desde a primeira República, professores e professoras negras disputam esse espaço junto aos filhos e filhas das elites.
Segundo Maria Lúcia Rodrigues Muller, desde o início do século 20 podemos ver jovens negras, netas de escravos, inscritas nos registros municipais, pleiteando vagas como professoras concursadas. A presença dessas mulheres foi sendo reduzida paulatinamente , ao longo dos primeiros anos do século 20, ao passo que o Estado regulamentava tanto as admissões de professores e professoras quanto do alunado, sobretudo no curso noturno, onde mais se concentravam pessoas negras em ambas as condições. Novos obstáculos foram sendo impostos às pessoas negras assumindo o papel de professoras, sem que fosse dita uma palavra sequer sobre raça. Os testes médicos, fortemente influenciados pelo racismo científico da época, afastaram as “moças escuras” , que não se enquadravam no critério “fenótipo adequado” exigido nos exames, do magistério. Outros critérios como “mérito” e “biótipo saudável”, segundo Muller, tiraram de vez moças negras da sala de aula nos anos 1920. No Brasil, durante o processo de branqueamento da população, para ser professora também era preciso se encaixar em critérios morais que acabavam atingindo as moças e rapazes negros, cujas famílias eram egressas da escravidão. No registro geral das professoras e professores, constavam nomes de ambos os pais e avós, que eram religiosa e legalmente casados. A maioria dos pais eram doutores, comerciantes, funcionários públicos e, claro, brancos, muitos deles imigrantes. Isso era uma desvantagem para aquelas que nem sempre tinham acesso à genealogia familiar.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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