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Recentemente, em uma viagem para os Estados Unidos, tive oportunidade de visitar dois lugares de memória que contam versões completamente diferentes da história daquele país, e que nos servem de reflexão.
O primeiro deles é um complexo hoteleiro cujo tema celebra a história dos Estados Unidos , da colônia até a independência. Atraindo um sem número de estudantes, mas sobretudo homens e mulheres brancas de meia idade, patriotas celebrando as origens da formação do povo estadunidense, o parque é uma réplica de uma pequena cidade colonial. O lugar escolhido foi a região que representa o coração político do país, o estado da Virgínia, na região de Williamsburg.
Para compor fielmente o cenário, não faltam rapazes brancos vestidos com trajes de época carregando mosquetes, simulando batalhas pela independência, que aconteceu em 1776. Além deles, podemos ver mulheres negras jovens vestidas de escravas. Me incomodou particularmente um pôster de uma moça negra, jovem e vestida a caráter. Confortavelmente encostada sobre uma parede, numa pose que parecia um breve ato de descaso, ela exibia um sorriso sereno. Aquela moça podia representar parte das primeiras gerações de afro-americanas nascidas no país. Abaixo da sua imagem havia a descrição “colonial Williamsburg”. Era uma espécie de mensagem de boas-vindas.
Moças negras, jovens e escravizadas decerto faziam parte de cenários como aquele durante o século 18, agora romantizado pelo complexo hoteleiro. Porém, faltou problematizar as condições de vida daquelas mulheres, que trabalhavam ao mesmo tempo em que geravam aquela que se tornaria uma vasta população negra escravizada nas 13 colônias. Uma dessas mulheres negras, Sally Hemmings, era escrava da família de um dos pais fundadores da nação, Thomas Jefferson. Após ficar viúvo aos 40 anos, Jefferson fez de Sally Hemmings, que tinha 14, sua serviçal doméstica e sexual. A vida “conjugal” dos dois durou décadas e, com Hemmings, Jefferson teve seis filhos, ainda que publicamente ele defendesse a inferioridade racial das pessoas negras e repudiasse a mistura racial.
O complexo hoteleiro quase se tornou um parque temático de história americana na década de 1990. O grupo Disney viu nesse setor a possibilidade de expandir seus negócios, investindo em um público patriótico interessado em uma determinada versão da história americana. No projeto, nenhuma palavra é dita sobre escravidão, mas o representante da Disney, Peter Rummell, o descrevia da seguinte forma: “Disney’s America vai permitir aos hóspedes celebrarem a diversidade da nação, a pluralidade e os conflitos que têm definido o caráter americano.” Foram historiadoras e historiadores, e certamente membros da comunidade afro-americana, que apontaram o grande problema da ideia do parque temático: sendo Disney uma empresa que até então tinha uma longa história em compactuar com o racismo da sociedade estadunidense, estaria ela disposta a não romantizar o cativeiro de negros e indígenas? As críticas ganharam força e o projeto foi cancelado.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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